Rosana Leite

A violência doméstica atinge mulheres de todas as classes sociais, mas muitos casos não são denunciados em razão da "vergonha" por parte das vítimas. A constatação é da defensora pública e coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher de Cuiabá, Rosana Leite, que concedeu uma entrevista ao MidiaNews nesta semana.
“Acho que isso [violência doméstica] no Brasil ainda não aparece muito pela vergonha. A mulher ainda tem vergonha de dizer que foi agredida pelo companheiro”, afirma. "Mas, para mim, a maior vergonha é você continuar em um relacionamento tóxico".
Segundo ela, só porque poucos casos vêm à tona não quer dizer que deixam de acontecer em números preocupantes. A defensora explica que toda mulher, independente de classe social, grau de escolaridade, raça ou qualquer outra característica, está suscetível a sofrer violência por conta do machismo.
Apesar da "vergonha", Rosana acredita que atualmente as mulheres de classes mais altas estão conseguindo quebrar o ciclo de violência e denunciando mais, como foi o caso recente da advogada Luciana Póvoas ao denunciar o marido, Leonardo Campos, presidente da OAB de Mato Grosso. "A mulher que se cala está deixando que algo pior aconteça à sua vida", diz.
Leia os principais trechos da entrevista:
MidiaNews - Há poucos dias, o presidente da OAB foi denunciado pela esposa por agressão. Todos nós sabemos que este tipo de ocorrência é subnotificada. Acha que a atitude da advogada Luciana Póvoas pode encorajar outras mulheres a fazerem o mesmo?
Rosana Leite - Eu não conheço o fato, só conheço o que foi divulgado pela mídia. Eu não estou a par do inquérito, do que aconteceu, das declarações. Mas sempre serei solidária às mulheres tendo em vista a minha função, a minha atribuição dentro da Defensoria Pública como coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher e como feminista. Então sempre acreditarei na palavra da mulher. Toda e qualquer mulher que busca ajuda sempre encoraja outras mulheres, com certeza! A mulher que se cala está deixando que algo pior aconteça à sua vida. Se ela vem sofrendo violência doméstica e familiar, essa violência já está trazendo uma infelicidade para ela. Ela precisa quebrar esse ciclo de violência para viver realmente com dignidade. Então toda e qualquer mulher deve ser encorajada a agir porque a lei é igual para todos.
MidiaNews - Nas classes mais altas, os casos de agressão são menos públicos. Por que isso acontece?
Rosana Leite - De fato, aqui no Brasil, nós temos uma camada muito maior de mulheres menos abastadas. Então a classe mais alta, de mulheres mais abastadas, tem aparecido hoje em dia. Antigamente nem aparecia. Já vem aparecendo a violência doméstica em qualquer lugar, em qualquer classe social, credo, raça, grau de escolaridade. Mas acho que isso no Brasil ainda não aparece muito pela vergonha. A mulher ainda tem vergonha de dizer que foi agredida pelo companheiro. Mas, para mim, a maior vergonha é você continuar em um relacionamento tóxico. Ela pode se tornar um espelho para outras mulheres. Celebridades já mostraram que sofreram violência, autoridades... Todas as mulheres hoje em dia estão a par do seu direito e sabendo que podem buscá-lo.
A Lei Maria da Penha atende toda e qualquer mulher. Toda e qualquer mulher é vulnerável dentro de um relacionamento amoroso por conta do machismo que nós vivemos no Mundo inteiro e também pela nossa vulnerabilidade. Se tem algo em que nós somos diferentes, é pela nossa condição física. Então em uma luta corporal, fatalmente a mulher perde. Essa vulnerabilidade existe, só que há mulheres que são vulneráveis e hipossuficientes, quer dizer, elas saem do relacionamento amoroso sem nada, que é a camada que eu atendo.
MidiaNews - A advogada alegou que não denunciava antes por ser dependente financeiramente do marido. Isso é comum a muitas mulheres, não é mesmo?
Rosana Leite - Muito comum. Legisladores pensaram nessa dependência econômica que a mulher sempre viveu e já nas medidas protetivas deram a oportunidade da mulher pedir alimentos provisionais. Quando for provado que aquela mulher é dependente economicamente daquele marido, ela pode sim pedir alimentos provisionais mostrando que aquela dependência existe, que o companheiro era quem provia o lar com dinheiro. Muitas vezes isso acontece pela dependência emocional. A dependência financeira muitas vezes vem ligada à dependência emocional quando o companheiro, por ciúme, impede a mulher de crescer, de se capacitar profissionalmente, de estudar. Ela acaba dependente emocional dele e dependente financeira também pela condição de ter sido impedida de se capacitar. Quem conhece isso são as pessoas que atuam dentro do processo e que conhecem o tipo de agressão que essa mulher sofreu.
Rosana Leite: Lei Maria da Penha é um avanço
MidiaNews - Além da agressão física e dessa dependência financeira, que também é vista como uma agressão, quais outras violências podem acontecer dentro de casa?
Rosana Leite - A violência psicológica, que é algo que machuca muito também. Ela pode ser xingada por seu companheiro, ser comparada com outras mulheres. Muitas vezes no início do relacionamento a mulher opta por ficar em casa cuidando e o companheiro acha maravilhoso, até incentiva essa mulher a ficar em casa. Com o tempo, ele passa a achar interessante aquelas mulheres que convivem com ele no ambiente de trabalho e que além de trabalhar, de terem se capacitado, também são donas de casa, porque as mulheres acabam exercendo duplas e triplas jornadas. Ele acaba xingando a sua companheira de burra, de incompetente. Essa violência é um exemplo de violência psicológica que muitas mulheres sofrem.
Tem violência moral também, que é causada pelo ciúmes, um dos piores sentimentos que existem. Esse sentimento enxerga o que ninguém vê. Muitas vezes ele culpa a mulher, deixa uma culpa dentro da mulher como se ele tivesse que ser o primeiro companheiro dela, o primeiro homem, o primeiro amor e como ela ia prever que ela ia encontrar esse homem. Ela fica restrita de relacionamentos, ela fica acuada dentro de casa e dentro do relacionamento, com medo de se relacionar com outras pessoas pelo ciúme que acaba expressando e ela prefere viver naquilo que ela está do que com o ciúmes. Ela prefere se isolar dentro de casa, sozinha, para que ela não seja agredida pelo ciúme que este homem está causando com a violência moral.
Tem também a violência sexual, que pode estar acontecendo muito nessa quarentena, que é forçar a mulher a manter um relacionamento sexual. O companheiro, o marido, não pode forçar. O corpo é da mulher. Mesmo se ela é casada e ela está no meio de uma relação sexual e falar que não quer mais, se for forçada, pode acontecer um crime muito grave, que é o delito de estupro.
A violência patrimonial acontece muito quando há separações. Quando há separação, a violência patrimonial muitas vezes acompanha. O companheiro diz: “Quem trabalhou foi eu então você não tem direito a nada”.
MidiaNews - No caso da advogada, ela alegou que o marido havia ingerido bebida alcoólica. Esse parece ser um componente comum na grande maioria dos casos.
Rosana Leite - O álcool, a ingestão de substância entorpecentes, tem potencializado, não é a causa. Não só a doméstica, mas toda e qualquer agressão pode ser potencializada pelo uso de substâncias entorpecentes. A pessoa que comete uma agressão ao fazer uso de álcool não pode justificar porque ali ela usou a substância de forma voluntária. Ela não pode pôr a culpa.
MidiaNews - A senhora considera que as mulheres estão mais conscientes da importância da denúncia?
Rosana Leite - Eu considero que, no Brasil, a Lei Maria da Penha fez e faz mulheres fortes. Quando a mulher entende que a lei é de fato efetiva, eficaz, só basta o poder público saber o que se passa dentro da casa da mulher. Se a mulher nos relatar outras violências que ela está passando, se um vizinho, um familiar chama, a polícia pode naquele momento prender em flagrante. Caso ela venha sofrendo violência psicológica, emocional, ela pode buscar a delegacia e lavrar esse boletim de ocorrência. As mulheres precisam confiar que a Lei Maria da Penha é efetiva e eficaz.
MidiaNews - As estatísticas mostram que, após o isolamento social, cresceu bastante o número de agressões e até de feminicídios. Como se distanciar do marido agressor não podendo sair de casa?
Rosana Leite - Realmente é uma situação bem complicada. O isolamento social é necessário nesse momento. Nós estamos vendo um crescimento muito grande do coronavírus, as pessoas devem ficar em casa. Mas nós temos o outro lado da moeda com as mulheres vítimas. Muitas mulheres estavam dentro do ciclo da violência doméstica e familiar e tiveram que ficar em isolamento social com esse agressor. Outras se descobriram dentro do ciclo de violência. Só que o isolamento social também tem exceção da mulher comparecer na delegacia, narrar o que está acontecendo, pedir ajuda via telefone, via rede social, de alguma forma. Muitos homens que cometem feminicídio, em regra, é o primeiro delito em que são acusados dentro do Poder Judiciário. Nós vimos aqui em Mato Grosso uma lamentável estatística que foi o aumento do feminicídio dentro de casa. Isso deixa evidente que houve aumento da violência doméstica e familiar.
MidiaNews - Além do isolamento social, o desemprego e a falta de dinheiro são fatores que contaminam um relacionamento. Teme que essa crise advinda da pandemia possa piorar as relações dentro de casa?
Rosana Leite - É a mesma situação do ciúme, do uso de álcool, de drogas. Eu entendo que uma pessoa que escolheu viver com outra tem que estar preparada para todas as adversidades. Então isso não pode ser causa para violência. A pessoa que comete violência sabendo que está passando por uma crise, que o Mundo está passando por uma crise, e acaba desaguando essa situação em violência contra sua mulher, a mulher deve pensar muito bem quanto a esse relacionamento. Não existe motivo para a violência de qualquer forma, principalmente aquela pessoa que você escolheu para viver contigo.
MidiaNews - As mulheres ainda apresentam muita resistência em denunciar?
Rosana Leite - Elas têm. Isso faz parte do histórico que todas nós já passamos, de como a sociedade patriarcal foi construída. A vida inteira nós tivemos desconfiança na fala da mulher, tanto que podemos perceber que os maiores cargos oferecidos são ocupados por homens. Não há essa confiança no gênero feminino. A mulher tem esse medo de que a palavra dela não seja realmente compreendida, de que ela não seja acreditada, de que a palavra dela seja desconfiada.
Alair Ribeiro/MidiaNews
"Uma pessoa que escolheu viver com outra tem que estar preparada para todas as adversidades"
MidiaNews - Como está a estrutura pública de acolhimento às vítimas em Cuiabá?
Rosana Leite - Nós estamos tentando, buscando melhorar a vida dessa mulher através de políticas públicas. O sistema de Justiça de Mato Grosso é referência nacional. Nós cumprimos a Lei Maria da Penha do começo ao fim.
MidiaNews - A senhora tem acompanhado o trabalho da Delegacia da Mulher? A estrutura e a abordagem são suficientes?
Rosana Leite - Tenho acompanhado. Essa é uma preocupação nossa, que é a Delegacia da Mulher, que precisa ser referência também, tem que acolher a mulher, tem que fazer com que a mulher acredite na lei, acredite que ela pode buscar esse acolhimento. As delegadas e delegados também esbarram na falta de estrutura, na falta de efetivo na polícia, tem poucos servidores para acompanhar. Eu acredito nessa promessa de que nós teremos uma Delegacia da Mulher 24 horas porque os crimes acontecem muito em feriados, finais de semana, fora do horário de atendimento.
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3 Comentário(s).
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Neusa 07.06.20 10h06 | ||||
Tem mulher que convive silenciosamente com a violência, seja física, moral ou de natureza psicológica, que poderá inclusive ser mais devastadora. Eu infelizmente conheço algumas que vivem enfrentando situações incômodas sem reagirem. | ||||
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nelson 07.06.20 05h31 | ||||
na maioria das vezes a mulher no momento faz a denuncia, mas depois vai afrouxando e coloca panos quentes, como esta acontecendo em um caso recente aqui em Cuiaba | ||||
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Graci Ourives de Miranda 06.06.20 20h16 | ||||
Dra. Rosana, parabéns pelo trabalho. Deus abençoe seu lar. | ||||
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