“A tolerância tem que ser zero", afirma Dom Milton dos Santos

O arcebispo de Cuiabá, dom Milton Antônio dos Santos reconheceu, em entrevista ao MidiaNews, que a Igreja Católica enfrenta grandes desafios, que, segundo ele, são apenas o reflexo da sociedade atual.

Dom Milton é categórico com o tema pedofilia: ele defende que a punição aos envolvidos deva ser severa. “Direito Civil e Direito Canônico, ambos precisam ser atuantes. A tolerância precisa ser zero”, afirmou.

"Evangelizar é diferente de fazer proselitismo. Proselitismo é fazer propaganda da religião para ter o maior número possível de seguidores. Na Igreja, a qualidade é mais importante do que a quantidade. Há um enorme respeito à liberdade interior das pessoas", diz ele, sobre o crescimento das igrejas pentecostais.

A ascensão do papa Francisco, o primeiro latino-americano no mais alto patamar da Igreja Católica, é vista pelo arcebispo cuiabano como a oportunidade de o mundo se voltar para os países emergentes, que foram colonizados por europeus.

O relegioso acredita que a esse é um momento único para despertar o catolicismo, em todo o continente. “O fato de termos um papa latino-americano mexe com os católicos, desperta, portanto, o catolicismo”, disse.

Natural de Campos do Jordão (SP), dom Milton tem 67 anos e iniciou seus estudos como noviço em 1964, em Pindamonhangaba, também no interior paulista. É formado em filosofia, letras com inglês e teologia, tendo feito especialização na área na Universidade Pontifícia Salesiana, em Roma.

Em 1965, ele começou sua vida religiosa. Ordenado em 1974, foi designado bispo da diocese de Corumbá (MS), em 31 de maio de 2000, sendo ordenado em 20 de agosto do mesmo ano.

Foi nomeado arcebispo coadjutor da arquidiocese de Cuiabá em 4 de junho de 2003, assumindo em 9 de junho de 2004. Dom Milton sucedeu a dom Bonifácio Piccinini.

Dom Milton começou a vida religiosa em 1965

Veja os principais trechos da entrevista com o arcebispo do Cuiabá, dom Milton dos Santos:

MidiaNews: Qual é o significado de ter um papa de fora da Europa depois de mais mil anos e, além disso, latino-americano?

Dom Milton: Um papa latino-americano é bem significativo para toda a Igreja Católica, e, certamente, para o mundo todo. É um papa – foi arcebispo de Buenos Aires – “inculturado” na América do Sul.

Ele sente na pele os desafios de todos estes povos latino-americanos que foram colônias de países da Europa e são países emergentes. É todo um continente católico na maioria de sua população: o fato de termos um papa latino-americano mexe com os católicos, desperta, portanto, o catolicismo. É uma motivação toda especial.

Haverá um olhar de todos nós para os mais necessitados, para a juventude vítima de drogas, vítima de contra valores.

MidiaNews: São Francisco também é lembrado pela missão de reformar a igreja como um todo. A escolha do nome Francisco, para o papa, também tem essa abrangência?

Dom Milton: Eu não conheço o papa Francisco, mas ficou muito evidente, para a maioria das pessoas, que a escolha do nome “Francisco” se tornou a síntese de um programa de papado e, inclusive, um programa de cristianismo para a totalidade dos católicos.

“Francisco de Assis” é o irmão universal porque fez da pobreza um despojamento de si para ser total para todos. Então, “Francisco de Assis” é um indicativo da paz, da fraternidade, da alegria, da ecologia.

MidiaNews: O senhor acredita que é necessária uma reforma na Igreja?

Dom Milton: A reforma da Igreja é algo que precisa acontecer no dia-a-dia. Esta “reforma” tem outros sinônimos: restauração, conversão. Isto é necessário a todo instante: religião não é “caderneta de poupança”, que cresce por si, não!

"Verdadeiro cristianismo significa um modo de viver 24 horas por dia, em comunhão com as pessoas ao nosso lado"

O verdadeiro cristianismo significa um modo de viver 24 horas por dia, em comunhão com as pessoas ao nosso lado. Principalmente, e em comunhão com Deus, que é amor, comunhão, misericórdia.

Precisamos ter os “pés no chão”, ser realista; precisamos “ter o coração em Deus”, mística: comunhão com Deus; e, precisamos “ter as mãos e braços abertos” para auxiliar quem mais precisa ao nosso lado.

MidiaNews: Fala-se muito que a herança da Teologia da Libertação para a igreja na América Latina é o discurso em favor dos pobres. No caso do papa Francisco, o senhor acredita que ele terá relação com esse movimento?

Dom Milton: A escolha do nome “Francisco” está sendo um indicativo pelo próprio papa de que precisamos não perder o foco das pessoas mais necessitadas.

MidiaNews: Quais os desafios da Igreja Católica nos dias atuais?

Dom Milton: A Igreja Católica enfrenta desafios grandes, como toda a sociedade está enfrentando. Percebemos que estamos numa “mudança de época” mais do que numa “época de mudanças”. As mesmas pessoas que passam por esta crise mundial são as mesmas pessoas que procuram viver a sua religião exatamente nesta “mudança de época”.

A juventude é a principal vítima da inversão de valores, por causa do relativismo, o hedonismo (a procura do prazer imediato sem nenhum parâmetro moral e espiritual). Há um subjetivismo que determina atitudes pessoais e de grupos independentemente da sociedade, da religião.

MidiaNews: A primeira viagem do papa deve ser ao Brasil, onde a igreja enfrenta desafios muito grandes, como a evasão de jovens e o avanço das igrejas neopentecostais. Como a Igreja tem lidado com essas questões?

Dom Milton: A Igreja tem a missão de evangelizar “Ide pelo mundo inteiro... evangelizai todas as nações... batizai em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo (...”).

Evangelizar é diferente de fazer proselitismo. Proselitismo é fazer propaganda da religião para ter o maior número possível de seguidores. Na Igreja, a qualidade é mais importante do que a quantidade. Há um enorme respeito à liberdade interior das pessoas.

MidiaNews: O senhor tem uma ideia do que o papa pretende para orientar sobre o futuro da igreja no país?

Dom Milton: A ideia que tenho do que o papa pretende orientar sobre o futuro da igreja não só no país – Brasil – mas no mundo. É o pedido de Jesus: “Ide pelo mundo inteiro... evangelizai”.

O papa será o primeiro servidor da Palavra de Deus. Não é o que ele – papa - decide..., mas, o que Deus quer: “... seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu!” - Oração do Pai-nosso ensinada por Jesus.

"Os indivíduos não são robôs"

MidiaNews: Há um grande esforço para o diálogo inter-religioso, principalmente com as religiões mais antigas. Como é o diálogo neste momento entre a igreja e o neopentecostalismo, que não para de crescer?

Dom Milton: A Igreja é de Cristo. Então, o diálogo ecumênico precisa ser constante entre todas as religiões. Este diálogo existe, mas, precisa melhorar sempre mais.

MidiaNews: A Igreja Católica sofre com o déficit de padres. Como a Igreja tem atuado na descoberta de vocações e incentivado homens e mulheres para que tenham a religião como profissão?

Dom Milton: Há um aumento de padres diocesanos em todo o mundo, também na Arquidiocese de Cuiabá. As congregações religiosas, femininas e masculinas, estão passando por um momento de crise, o que provoca a renovação e a vivência dos próprios carismas no hoje da história.

Não é fácil, não! Não é fácil porque tudo isso mexe com a consciência-liberdade de cada indivíduo. Os indivíduos não são robôs.

O que se passa no campo das vocações religiosas e sacerdotais é também resultado do ar que respiramos, no dia-a-dia na sociedade. É uma mudança de época. É bastante dolorido para todos. Precisamos nos ajudar a superar positivamente, nestes tempos de crise.

MidiaNews: No ano passado, o frei franciscano Erivan Messias, da Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, em Cuiabá, foi acusado de manter relações com uma menor. Como o senhor analisa essas situações que envolvem religiosos e casos de pedofilia? Esse é um dos maiores problemas a serem trabalhados pela Igreja?

Dom Milton: A coisa mais importante que devemos ter é o respeito ao próximo. Então, eu não posso falar sobre ele [frei], sem ele estar presente. Principalmente, quando o indivíduo estava de passagem por Cuiabá, não pertence ao Clero da Arquidiocese de Cuiabá. Mas sabemos que foi uma situação complicada, deu grande repercussão na imprensa.

A Polícia não está preparada para esse tipo de ação, tanto que informaram que a menina era menor de 14 anos e, na verdade, ela já tinha 16. Isso não importa. Depois de tudo, a própria menor relatou que era apaixonada por ele e ele por ela. Isso não é crime.

MidiaNews: A punição de fato acontece? Por que a Igreja, em muitos casos, não expulsa ou afasta os acusados?

Pedofilia: "A tolerância precisa ser zero"

Dom Milton: A Igreja Católica tem a sua Constituição, que é o Código de Direito Canônico e tem, sim, as suas medidas disciplinares. Direito Civil e Direito Canônico, ambos precisam ser atuantes. A tolerância precisa ser zero!

MidiaNews: Novelas abrangem casos que envolvem união entre pessoas do mesmo sexo, comportamento que é criticado pela Igreja Católica. Como o senhor avalia essa situação no Brasil?

Dom Milton: Há uns anos atrás, fizemos uma análise crítica sobre os meios de comunicação. Principais jornais e novelas. Depois disso, comunicamos a diretora de uma novela do horário nobre, questionamos algumas situações. Ela disse que a novela só mostra o que acontece na sociedade. Por isso, as pessoas se veem em alguns personagens e isso choca. Agora mesmo, está passando sobre o tráfico de pessoas, prostituição, e isso realmente acontece, a sociedade está passando por isso. A verdade é que essa célula, que é a família, está muito desestruturada, perdendo os valores. E essas situações são consequências.

MidiaNews: A religiosidade do cuiabano é traço marcante na cultura. Nos dias atuais, ainda é presente essa religiosidade? As festas de Santo e comemorações nas comunidades acontecem como em décadas anteriores?

Dom Milton: Sou paulista, nascido em Campos do Jordão, e me apaixonei pela religiosidade que encontrei neste recanto de Mato Grosso.

Um professor aposentado da UFMT, em Corumbá, me dissem quando recebi a Carta de Transferência de Bispo de Corumbá (2003) para a Arquidiocese de Cuiabá: “Dom Milton, o senhor vai se apaixonar pela “religiosidade em Cuiabá, na Arquidiocese, é muito marcante”.

De fato, me faz um bem enorme: eu me sinto uma ovelha deste rebanho, que me ensina o jeito de viver esta religiosidade católica.

MidiaNews: O que o senhor define como a sua missão nesta arquidiocese tão cheia de tradições?

Dom Milton: Em 2004, iniciei um processo, um caminho, um itinerário de vivermos numa “casa e escola da comunhão”: é a dinâmica do Sínodo Arquidiocesano de Cuiabá.

A Arquidiocese de Cuiabá precisa ser uma realidade Arquidiocese-Net, isto é, em rede, em comunhão.  Informatizei a Arquidiocese de Cuiabá. Aliás, quando eu estava em São Paulo, fui presidente fundador de um provedor de Internet Cidadenet – Rede da Cidadania.

Porém, toda esta tecnologia é um indicativo, um sinal de como precisamos construir esta casa e escola da comunhão na arte das artes de coordenar as pessoas. Podemos manter e dinamizar tradições através de dinâmicas da Nova Evangelização (João Paulo II): nova nos métodos; nova nas expressões; nova no ardor.

"As pessoas, todas elas, são a ponte para podermos chegar a Deus no dia-a-dia"

MidiaNews: Estamos em um período de Quaresma, véspera da Páscoa. Este ainda é um período especial para os cristãos? Ou a maior expectativa é pelos ovos de chocolate?

Dom Milton: Quaresma, Páscoa são os momentos coração e central do ano. A Ressurreição de Jesus Cristo é a explicação da nossa fé. Inclusive, os ovos de Páscoa e outros símbolos. Eles mostram que a vida plena de Deus em Jesus Cristo chega a nós no dia-a-dia através da atenção às pessoas, as pessoas mais necessitadas ao nosso lado. As pessoas, todas elas, são a ponte para podermos chegar a Deus no dia-a-dia. Deus condicionou o nosso amor a Ele se passar através do amor às pessoas.

MidiaNews: Qual o papel da fé e da Igreja no mundo atual?

Dom Milton: O mundo precisa de Deus! Matematicamente, se prova que Deus existe: as cinco provas de Tomás de Aquino. Hoje, os cientistas falam da “partícula de Deus”: descobrir o como é feita a matéria é “tocar em Deus”. Os cientistas, quanto mais descobrem os segredos das coisas, mais se tornam contemplativos de Deus.

Este é o papel da Igreja: ela e o mundo precisam fazer a aventura de pedir os olhos emprestados de Deus, e, com esses olhos de Deus, olhar tudo e todos. Aí, tudo terá sentido, o sentido que o Criador-Deus ao criar o mundo e no mundo a pessoa humana para ela cuide de todo o criado.