Cuiabá, Segunda-Feira, 7 de Julho de 2025
INTOLERÂNCIA
22.06.2019 | 19h10 Tamanho do texto A- A+

Babalorixá: “A sociedade é preconceituosa; vivemos um apartheid”

João Bosco diz que desconhecimento é uma das principais causas de preconceito

Alair Ribeiro/MidiaNews

O sacerdote candomblista João Bosco:

O sacerdote candomblista João Bosco: "Brasil não é e nunca foi 100% cristão; é preciso respeito"

BIANCA FUJIMORI
DA REDAÇÃO

Desrespeito, agressões, ataques, violência e medo constante. Esse é o cenário vivido pelos praticantes de religiões de matriz africana no Brasil, segundo o historiador e sacerdote candomblista João Bosco. 

 

Iniciado no candomblé há 27 anos, Bosco afirma que a falta de conhecimento a respeito destas religiões é um dos principais motivos do preconceito e violência contra tais práticas religiosas. Segundo ele, o País vive um "evidente apartheid".

 

“O desconhecimento causa preconceito, causa intolerância, causa separatismo, causa esse apartheid [sistema de segregação]. E nós estamos vivendo um verdadeiro apartheid no nosso País. Não é um apartheid velado, é um apartheid declarado”, disse.

 

O babalorixá, como são chamados os sacerdotes, acredita que as redes sociais se tornaram uma extensão da intolerância religiosa e do preconceito contra o que é diferente.

 

Para ele, é por meio dos grupos de WhatsApp, Facebook e outras mídias que se propagam "os maiores venenos" sobre as religiões de matriz africana.

 

O desconhecimento causa preconceito, causa intolerância, causa separatismo, causa esse apartheid. E nós estamos vivendo um verdadeiro apartheid no nosso País. Não é um apartheid velado, é um apartheid declarado

Em entrevista ao MidiaNews, o sacerdote afirmou, ainda, que a sociedade está regredindo e voltando à Idade Média - quando havia perseguição contra outras práticas religiosas, consideradas pagãs pela Igreja Católica -, falou sobre as principais religiões da matriz africana (e suas diferenças) e defendeu o tombamento das religiões de matrizes africanas como patrimônio cultural do País.

 

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:  

 

MidiaNews - Dados recentes apontam que o Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas, e os adeptos de religiões de matriz africana estão entre os principais alvos. Por que o senhor acredita que isso ocorre?

 

João Bosco - Desde que o Brasil foi colonizado por europeus católicos, extremamente rigorosos com a doutrina cristã, trouxe o preconceito para as Américas. O Brasil está dentro das Américas. Os primeiros a serem discriminados foram os indígenas. Um bocado deles não se curvou para a Igreja Católica. Então, os deuses da população indígena foram vistos como menos, como pagões. Depois, vem a leva de africanos já na condição de escravizados.

 

Antes de chegar no Brasil, já existia todo um processo formado, na África, de colonizar. Então, o europeu vai à África e já começa a colocar o seu deus, o deus do mundo cristão. Nas Américas há todo o processo de intolerância desde 1539, que chega com a primeira leva de escravos. Junto com essa leva dos negros que vem da África, vem com todo um caldeirão cultural, vem com um arsenal de cultura, entre as quais a cultura religiosa, que difere em absolutamente tudo do caldeirão cultural do mundo europeu. E o europeu é o "dono da bola", então ele vai diminuir a religião do outro para impor a sua.

 

A partir do momento em que você não aceita a religião do outro, a forma de crer, de louvar e pensar do outro, a tendência é você menosprezar. E desde o século XVI, a violência foi a grande arma contra as religiões de matriz africana. E isso veio perpassando no século XVII, século XVIII, século XIX, chegou no século XX e agora a gente percebe com uma veemência enorme as intolerâncias religiosas contra nós, praticantes de religiões de matriz africana. Fruto de um desrespeito, fruto de uma não aceitação do outro na forma de ser, de praticar, de agir e de pensar. Isso ficou muito evidente a partir dos anos 60, 70, do século XX e vai desembocar no século XXI com o crescimento das religiões neopentecostais. Isso a gente não pode minimizar.

 

Esse crescimento das religiões neopentecostais fez com que aumentasse as intolerâncias religiosas contra nós, praticantes de religiões de matriz africana, por uma questão óbvia: eles precisam encontrar o mal. E onde está o mal na concepção deles? Está nas religiões de matriz africana, porque a gente louva diferente, a gente cultua diferente, a gente fala diferente, a gente tem uma indumentária diferente, então aí está "o mal". Eles ainda não têm uma identidade formada. Toda religião que se presa do mundo cristão precisa encontrar o bem e o mal. Eles têm essa dicotomia - bem e mal - muito separada. Ai todo esse destilar de ódio, esse destilar de intolerância, esse destilar de não respeito. Aí essa violência que se faz. Não basta só a intolerância, eles têm que quebrar tudo, têm que ameaçar sacerdotes e sacerdotisas, têm que meter a pedra na cara da menina porque é a futura sacerdotisa ou a futura praticante de religião de matriz africana. A intolerância chega ao cúmulo do absurdo de não respeitar o corpo do ser humano.

 

 

MidiaNews - Nesta questão de intolerância, qual o cenário que podemos desenhar no Estado? O ataque aos terreiros ainda é a principal forma de violência?

 

João Bosco - Cuiabá, Mato Grosso, não fica de fora disso. As intolerâncias não chegam a ponto de depredação, de saques a templos de Candomblé e Umbanda, mas as escolas são alvo muito grande de intolerância religiosa. As crianças de creche, as crianças do ensino fundamental, são alvos muito comuns de intolerâncias religiosas por professores, diretores de escolas. Há denúncias na Secretaria Estadual de Educação, denúncias nos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial, em que a professora chegou com a bíblia e colocou na cabeça do menino porque ele foi vestido de branco na sexta-feira. Isso ocorreu aqui em Cuiabá. Há creches que obrigam as crianças a cantarem: “Derrama, oh Senhor, sobre nós...”. A criança não sabe o que está cantando, mas estão impondo isso à criança. Estão ensinando a criança de que existe uma religião única. É uma intolerância direta.

 

A partir do momento em que você não aceita a religião do outro, a forma de crer, de louvar e pensar do outro, a tendência é você menosprezar. E desde o século XVI, a violência foi a grande arma contra as religiões de matriz africana

Chega ao cúmulo do absurdo a professora pegar a bíblia e colocar na cabeça do menino e dizer que ele está cultuando o capeta ou ainda, como aconteceu no Bairro Jardim Universitário, colocar o menino de joelhos e falar: “Sai, capeta”. Isso em um menino de seis anos, porque ele estava de branco em uma sexta-feira. Quase um exorcismo de uma criança. A criança chega chorando em casa e fala para a mãe que a pastora do bairro fez isso com ele. É outra forma de intolerância. Diferente do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia, que quebram tudo, que ameaçam sacerdote. Aqui é essa ameaça à criança, essa violência à criança e ao adolescente. O adolescente não pode expressar a sua religião. Ele tem que calar-se, ficar quieto, não pode falar.

 

MidiaNews - Em uma sociedade que vive “mergulhada” em redes sociais, a difamação também é um inimigo difícil de ser derrotado?

 

João Bosco - As redes sociais nos unem. A distância ficou estreita diante das mídias sociais, mas também é um instrumento de uma profunda perversidade contra aquele que é diferente. Através das redes sociais se destila o maior veneno contra as religiões de matriz africana. É exatamente através das redes sociais que se afirmam aquilo que a gente não é, na condição de religião de matriz africana. Cultuadores do demônio? Nós, candomblistas, não cultuamos este ser. Este é um ser do mundo cristão. Nós não sabemos o que é o demônio, o que é satanás, o que é capeta. Aí, eles associaram ao Exu. Exu é o demônio e a Pomba Gira é o demônio feminino, é o "capeta de saias".

 

Associar essas divindades, principalmente Exu - que é a divindade menos entendida do Brasil - ao demônio é profundamente perverso. Todo mundo tem sua mídia social, todo mundo tem seu Facebook, seu grupo de WhatsApp, e através desses grupos que se propagam cada vez mais essas intolerâncias. Os neopentecostais, pouco ociosos disso tudo, levam isso ao pé da letra e aí, a primeira ação dele é juntar um grupo de irmãos e irmãs e depredar o terreiro, porque ali "é a casa do demônio, a casa do satanás". Ou então, professoras pouco cientes de seu papel como educadoras fazem esse despautério com as nossas crianças.

 

MidiaNews - O desconhecimento sobre as religiões de matriz africana é o principal motivo dos ataques?

 

João Bosco - O desconhecimento causa preconceito, causa intolerância, causa separatismo, causa esse apartheid. E nós estamos vivendo um verdadeiro apartheid no nosso País. Não é um apartheid velado, é um apartheid declarado. A partir do momento em que um presidente da República vai em algumas mídias sociais e diz o que ele disse, se eu não estou enganado, no primeiro mês de governo dele, afirmando que não tem nada contra religiosos de matriz africana, só não quer que nós imponhamos temas afro-brasileiros dentro das escolas.

 

Existe uma lei, a lei 10639/2003, que impõe que todas escolas de ensino fundamental e médio e as universidades estudem história e cultura africana e afro-brasileira, literatura africana e afro-brasileira, arte africana e afro-brasileira. Então, não somos nós que estamos querendo impor, não. Nós estamos fazendo cumprir uma lei que está na Lei de Diretrizes e Bases. E o atual presidente da República [Jair Bolsonaro] diz isso, que nós estamos querendo impor uma religião.

 

O Brasil é cristão, a gente sabe que a grande maioria do Brasil é cristão, mas não é 100% cristão e nunca foi 100% cristão. Apesar de toda a violência, apesar de toda a intolerância, a gente resistiu. Nossos antepassados resistiram e a gente continua resistindo. Até quando? Não sabemos, mas se a gente se for, outros ficarão nos nossos lugares e pegarão essa bandeira, e vão continuar a luta árdua, diária. Eu estava falando para alguns colegas que eu tenho medo, sim, que meu terreiro seja depredado, tenho medo porque estou em volta de seis igrejas neopentecostais. A crítica que eu faço são às igrejas neopentecostais porque elas são extremamente intolerantes. Elas não conseguem conviver com o diferente de jeito nenhum.

 

 

MidiaNews - No ano passado, um levantamento nacional apontou queda no número de denúncias de intolerância religiosa. O senhor acredita em queda ou há uma subnotificação dos casos?

 

João Bosco - Todos os meus colegas do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia, falam que vão à delegacia fazer a denúncia e nunca é colocado como intolerância religiosa. A grande maioria das vezes é colocado como briga de vizinhos, uma pequena rusga entre pessoas do quarteirão e nunca como uma intolerância religiosa. A própria pessoa que está recebendo aquela denúncia também pratica certa intolerância, mesmo que você leve todas as provas cabais de que houve intolerância religiosa. O crime de intolerância religiosa requer reclusão de 3 anos e meio, então minimizam isso, colocando que foi uma briga de vizinhos.

 

Mesmo tendo essa intolerância, as pessoas estão preferindo não denunciar. Eu não coaduno com essa ideia de não denúncia. Tem que denunciar, sim. Houve um recuar, como também, por outro lado, muitos sacerdotes e sacerdotisas preferem não denunciar por medo. Eles têm muito medo, o lance do prezar pela vida, principalmente no Rio de Janeiro, nos morros cariocas, com essa pressão dos traficantes para que os terreiros saiam do morro. É um ato dos praticantes de religião de matriz africana não fazer a denúncia porque há todo um processo de intimidação das pessoas, os chamados "traficantes de Jesus, traficantes de Deus".

 

Quanto mais eu vivo - hoje estou com 56 anos - mais parece que estamos voltando à Idade Média. Parece que a gente está voltando a um momento de “queime as bruxas”. Parece que estamos voltando nesse momento e dá um medo, não vou negar. Será que estou fazendo certo em bater no peito e dizer que sou candomblista, sair com meus fios de conta na rua? Quando eu estou no auditório é legal, mas e quando eu saio? Apesar de todo o medo, eu não consigo mais me recolher no ostracismo. Eu não consigo me calar. Se eu me calo, estou sendo conivente com essa situação. Apesar de todo o medo, já não cabe mais em mim entrar em uma ostra e fingir que está tudo legal, porque não está.

 

 

MidiaNews - Há uma sensação de impunidade para quem comete tais crimes?

 

João Bosco - Total impunidade. Os neopentecostais têm a certeza de que nada vai acontecer com ele. O católico radical tem a certeza de que nada vai acontecer com ele. Na concepção da grande maioria das autoridades, essas pessoas que praticam intolerância estão corretas. Então, eles têm esse total controle da situação. A professora que praticou aquilo dentro da escola de ensino fundamental tem a certeza de que não vai acontecer nada com ela, porque ela tem todo um aval de uma direção de escola, de uma coordenadora pedagógica, de que não vai acontecer nada e muito menos ser chamada para dizerem: “Colega, você está equivocada. Aqui na escola você ensina Ciências”. Ninguém vai falar isso para esta colega.

 

Há uma sensação de impunidade, há certo acomodar na situação, no sentido de "para que eu vou denunciar, se não vai acontecer nada? Vai continuar o mesmo e eu simplesmente vou ficar marcado". Então, vamos fingir que nada existe, que nada aconteceu.

 

A minha geração, lá nos anos 70, quando eu cursava o ginásio, a minha mãe falava para eu me calar. O que a gente percebe hoje é exatamente isso. Por uma ausência de uma atitude governamental, atitude de autoridades no geral, fazem com que fiquemos quietos, ou seja, aceitemos a situação. Mas como aceitar a intolerância? Como aceitar os preconceitos contra nós, como aceitar que somos diferentes, mas temos os mesmos direitos? Somos diferentes no ato de crer, pensar e louvar, mas temos o direito a uma educação de qualidade, à creche, à moradia. Temos direito ao usufruto daquele terreno que construímos com sangue, suor e

Há uma sensação de impunidade, há certo acomodar na situação, no sentido de 'para que eu vou denunciar, se não vai acontecer nada?'

lágrimas de cada um de nós, religiosos de matriz africana, porque não temos nenhum incentivo governamental, como tem as neopentecostais. Eles não pagam IPTU, eles têm incentivo para pagar 50% de energia, 60% de água e nós não temos nenhum incentivo. E não é por falta de reivindicação, não. Nós já fomos reivindicar a isenção de IPTU, a metade da conta de água. Não temos porque não tem nada que se resguarde na Constituição Estadual ou um decreto que assegure às religiões de matriz africana esses direitos. Todas as sextas-feiras, os adventistas têm direito a sair mais cedo do trabalho antes do pôr-do-sol. Fomos reivindicar isso. Podemos? Não podemos. Somente as religiões cristãs podem fazer isso, entre as quais a Adventista de Sétimo Dia.

 

MidiaNews - Como vocês resistem aos ataques? Falta espaço público ou apoio para colocar fim nesses atos de violência?

 

João Bosco - A resistência está sendo através das nossas organizações. Ao mesmo tempo que esse emaranhado de efervescências de intolerâncias cresceu no Brasil, cresceu também as organizações das religiões de matriz africana. São associações, são federações, ressurgimento de federações que estavam um pouco adormecidas de Umbanda e Candomblé. Eu acho que ainda está nos primórdios, ainda está muito pequeno, muito lenta essa forma de organização e resistência diante do advento imensurável dessa violência física e verbal que acometem contra a gente.

 

A gente nunca parte para o confronto direto. Nunca ouvi dizer no Brasil que houve confronto direto, por exemplo, de os religiosos de matriz africana irem à igreja tal e depredarem tudo. Eu não tenho notícia disso. Se aconteceu, não sei se a mídia não noticiou. Mas através das organizações, a gente se organiza para ir de forma coletiva fazer as denúncias. Você já não vai mais sozinho fazer a denúncia, você vai de forma coletiva. E também a gente não pode negar o papel dos conselhos de promoção de igualdade racial. Todo Estado tem o seu conselho de igualdade racial, que está desempenhando um papel muito grande junto nós, religiosos de matriz africana, de acatar denúncia, criar 0800, ter um advogado à disposição da gente - porque a grande maioria não pode pagar um advogado, são pessoas pobres, são pessoas trabalhadoras e, às vezes, as pessoas até não sabem como agir. São pessoas muito simples, muitos semianalfabetos, alguns analfabetos que não sabem como reagir diante daquela situação, a não ser pedir para as divindades. Nesse caso, não é pedir para as divindades porque tem que agir no terreiro. Você tem que agir no mundo material, você tem que correr atrás de um advogado, de um delegado de polícia, de uma federação. Ai você tem que explicar que o terreiro tem que ter uma legalidade, ele precisa de um estatuto, ele precisa de CNPJ para você sair da clandestinidade, criar uma associação civil para cuidar dos bens materiais dessa casa. Constitua minimamente, esteja presente, filie-se a uma federação, a uma associação, não seja só do mundo. Essa é a ideia: não seja só no mundo. Porque ser só no mundo é você entrar no ostracismo. 

 

 

MidiaNews - A Umbanda e o Candomblé são as principais religiões de matriz africana no Brasil? Quais as outras que podemos elencar?

 

João Bosco - Não que a Umbanda e o Candomblé sejam as principais religiões. Elas são as mais praticadas e as mais conhecidas no Brasil. Mas existe o Xambá, muito conhecido no interior do nordeste brasileiro; existe o Batuque, muito comum no Rio Grande do Sul; existe a Quimbanda, comum também em todos os estados brasileiros, mas poucos são os quimbandeiros que se declaram como tal. São essas as religiões mais conhecidas no Brasil. As outras são de porte menores, têm pouca significância para a cultura brasileira. São mais cultos familiares, que não têm tanta influência na cultura brasileira.

 

MidiaNews - Muitas pessoas, por desconhecimento, confundem as religiões – principalmente a Umbanda e o Candomblé. Quais as diferenças entre elas?

 

João Bosco - A Umbanda é a religião mais popular dentro do Brasil, em se tratando de religiões de matriz africana. É uma religião tipicamente brasileira, com fragmentos de várias culturas religiosas, entre as quais as religiões de matriz africana. O que a Umbanda herdou do Candomblé foi o culto às divindades, especialmente Oxalá, Ogum, Oxossi e Xangô. Mas não há manifestação dessas divindades como há no Candomblé. O que a Umbanda cultua são espíritos de antepassados recentes de escravos e indígenas. Esses seres espirituais incorporam nos corpos dos seus médiuns, que são os chamados pretos velhos, os caboclos, para dar um conselho, para fazer um trabalho. Já no Candomblé, há manifestação dos orixás, que são elementos cósmicos da natureza. É o elemento água, ar, terra e fogo. No Candomblé de nação Ketu, é chamado de orixá. Existe Candomblé de nação Angola, de nação Jeje, tem outras nomenclaturas. Então, a grande diferença está exatamente aí. Óbvio que há mais diferenças.

 

A única semelhança que há entre Candomblé e a Umbanda é a comunicação com o além. Fora isso, não há semelhança nenhuma. As pessoas fazem uma confusão que não existe. Nós temos culto a Exu orixá, que o pessoal da Umbanda repudia um pouco. Falam que nós cultuamos o demônio, o capeta. E nós cultuamos essa divindade que é o dinamismo. Exu orixá nada mais é que um ser dinâmico, um ser que faz a comunicação do mundo visível, que nós chamamos de Àiyé. Esse ser Exu - cuidado para não confundir com Exu alma - é o Exu africano, que faz a comunicação do mundo material, o mundo visível, o Àiyé; com o mundo espiritual, que é mundo invisível, o Orun - que não é o céu do mundo cristão, é o mundo onde moram os invisíveis. Não há semelhança com o que nós chamamos de Orun com o céu do mundo cristão.

 

 

MidiaNews - Pelo o que o senhor explicou, pode-se dizer que a Umbanda também tem um preconceito com o Candomblé?

 

João Bosco - Sim. Com muita tranquilidade, há esse preconceito recíproco. A Umbanda tem preconceito contra nós, praticantes de Candomblé, e muitos candomblistas também têm preconceito com a Umbanda, uma vez que muitos candomblistas afirmam que o culto de Umbanda não tem uma identidade, é um mix, é um pouco de catolicismo popular, um pouco de pajelância, um pouco de kardecismo e um pouco de africanismo. E não podemos deixar de afirmar que isso é correto. A Umbanda é esse caldeirão cultural mesmo, mas nem por isso temos que discriminá-los. Muitos candomblistas afirmam que nós somos melhores, porque cultuamos orixás, porque cultuamos voduns, porque cultuamos inquices, mas na realidade são religiões diferentes, apenas isso, e que merecem respeito. Assim como a gente quer respeito das religiões como um todo, então também temos que respeitar. O respeito é uma via de mão dupla.

 

MidiaNews - Muitas pessoas se referem à macumba de forma pejorativa. O que de fato significa e porque o senhor acredita que é associada a algo ruim?

 

Nós nos chamamos de macumbeiros porque nós sabemos o significado de macumba, que não é o mal

João Bosco - A grande população, pouco consciente sobre religiões de matriz africana, faz essa conotação de que macumba é algo do mal. Antes de existir a umbanda - a umbanda é muito recente no Brasil, data de 1908 nesse aspecto organizado de religião - o que existia no Rio de Janeiro eram as macumbas. Nos morros cariocas e nos bairros periféricos, o que existia era a macumba: pessoas que praticavam a incorporação com antepassados brasileiros nos seus quintais, em um quarto de fundo de quintal. Ali praticavam a macumba. Tocava-se atabaque, envolta de uma árvore, e invocava-se seres espirituais. Eles mesmos se identificavam como macumbeiros. Macumba nada mais é do que um instrumento musical.

 

A sociedade preconceituosa, estritamente racista, sempre apontava o dedo: “Os negros estão praticando macumba, os negros estão praticando o mal, os negros estão querendo nosso mal”. E era sempre a macumba. A partir daí, esse termo se popularizou em nosso país como sendo algo do mal. Entre nós, religiosos de matriz africana, nós nos chamamos de macumbeiros porque nós sabemos o significado de macumba, que não é o mal. Macumba nada mais é do que um instrumento musical que você toca, que hoje popularizou muito mais o atabaque que a macumba, no sentido de instrumento musical.

 

A macumba é o ato de você receber uma entidade no seu corpo, é o ato de você fazer uma oferenda e nem sempre essa oferenda é para o malefício de alguém, nem sempre essa oferenda é para amarrar fulano com beltrano, mas sim para você agradecer, para você pedir. Quando eu pego uma erva sagrada e pilo essa erva e transformo em um banho de axé, isso é fazer uma macumba, é fazer uma magia.

 

 

MidiaNews - Essa prática de incorporações espirituais tem ligação com o Kardecismo?

 

João Bosco - A Umbanda pega um pouco disso, do Kardecismo. Ela se apropria da questão da incorporação de seres do além a partir do Kardecismo. A macumba já fazia isso antes de existir a Umbanda, a Cabula já fazia isso antes de existir a Umbanda. A Cabula é pouco conhecida no Brasil, é mais no interior do nordeste brasileiro, mas tem a mesma conotação de macumba. A Umbanda capta isso da doutrina kardecista e traz para si a incorporação de pessoas que desencarnaram e voltam momentaneamente para aconselhar, para ajudar a direcionar um caminho para vida dos seres humanos que estão nesse plano, para trazer uma notícia do além.

 

O preto velho tem essa conotação de avô carinhoso, bondoso, aquele ser que trabalhou muito na condição de escravo e volta para acalentar os seus, os praticantes de Umbanda. Isso é típico do culto de Umbanda.

  

MidiaNews - Anos atrás, foi defendido que, para combater o racismo e a intolerância religiosa, o Governo brasileiro precisa reconhecer a contribuição dos africanos na construção da sociedade brasileira, inclusive com o tombamento das religiões como patrimônio cultural. O senhor concorda com essa visão?

 

A única semelhança que há entre Candomblé e a Umbanda é a comunicação com o além. Fora isso, não há semelhança nenhuma. As pessoas fazem uma confusão que não existe

João Bosco - Eu concordo plenamente. Não posso negar em nenhum momento que, com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva é que começa todo o processo de reconhecimento das contribuições das religiões de matriz africana como patrimônio nacional. Muitas casas, especialmente em Salvador e São Paulo, foram tombadas como patrimônio. Algumas comidas, que nós chamamos de comidas sagradas, também foram tombadas como patrimônio cultural do Brasil, entre os quais o acarajé. A partir desse reconhecimento governamental, neste momento, durante os oito anos desse governo de centro-esquerda, houve sim um avanço da respeitabilidade a nós, religiosos de matriz africana. A partir do momento que há pressão dos movimentos sociais negros, pressão dos religiosos de matriz africana. Porque não foi uma dádiva do Luiz Inácio Lula da Silva. Ele não acordou e disse: “Hoje eu vou assinar a lei 10.639”. Não, foi uma pressão desde os anos 80, final dos anos 70. Os movimentos sociais queriam uma reparação, e não era reparação em dinheiro, mas queriam um reconhecimento da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos das escolas. Não é estudar religiões de matriz africana, mas estudar a cultura, a influência da cultura, a influência das ideias africanas e afro-brasileiras para a construção da cultura nacional.

 

Não posso negar em nenhum momento que é exatamente nesse governo que há esse avanço. Agora parece que está ocorrendo um retrocesso de toda essa política criada nos oito anos desses governos de centro-esquerda. A gente tem que fazer esse reconhecimento e também ressaltar que não é uma benesse governamental. Foi a pressão dos movimentos negros, dos religiosos de matriz africana, que faz com que o Lula assinasse essa lei.

 

Então, há essa questão de tombamento das casas e eu acho que tem que haver esse reconhecimento, esse tombamento [ocorreu] porque são espaços de resistência. Um terreiro é um espaço de resistência de uma cultura. Ali dentro daquela comunidade se pratica uma cultura, uma gotinha de África está presente naquele bairro, naquela cidade, naquele Estado e a gente não pode negar que a gente tem muito de africano. Não é só porque você nasceu com a pele branca [que você não tem]. Todos nós temos esse tiquinho de África dentro de nós e negar isso é negar a brasilidade, é negar ser brasileiro.

 

31 de dezembro é tudo muito lúdico. Vamos lá louvar Iemanjá na beira do mar. Terminou 31 de dezembro, em 1º de janeiro a intolerância é "pau no lombo". A grande mídia solta umas coisas assim: “Está vendo? O Brasil é tão democrático. Olha só que beleza”. Mas no dia seguinte ou no dia anterior mesmo, ninguém quer saber o que a dona Maria, que é sacerdotisa, lá no bairro periférico, está passando. São essas coisas que para mim são inconcebíveis. É muito bonito, é muito lúdico essas brincadeirinhas com Iemanjá. E é uma Iemanjá branca, diga-se de passagem, ela não é uma Iemanjá negra. A cintura dela é maravilhosa, os cabelos abaixo do quadril, aquela coisa bem Nossa Senhora. É isso Iemanjá mesmo? Tira o negro daquela imagem e cria uma outra. Essa aí, sim, dá para a gente pular sete ondinhas. Mas não uma Iemanjá negra, de cabelo carapinha [crespo], gorda, mulher. Tudo isso está embutido nesse processo de intolerância religiosa. É uma religião, a grande maioria, composta por mulheres. Aí, a gente fala contra o preconceito da mulher, preconceito de gênero, preconceito de orientação sexual. Os nossos terreiros têm muitos homossexuais, transexuais, bissexuais. É um bocado de preconceito materializado nas religiões de matriz africana.

 

31 de dezembro é tudo muito lúdico. Vamos lá louvar Iemanjá na beira do mar. Terminou 31 de dezembro, em 1º de janeiro a intolerância é 'pau no lombo'

MidiaNews - Em 2017 foi criado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado em 21 de janeiro. A data coincide com a morte da ialorixá Gildásia dos Santos, conhecida com mãe Gilda de Ogum, fundadora do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã (BA). Qual a importância dessa data?

 

João Bosco - Essa data é uma forma de a gente gritar contra os preconceitos, de a gente colocar a "boca no trombone" contra o preconceito. Não é uma data para a gente celebrar, não é para comemorar, muito pelo contrário. A gente pega a data da morte da ialorixá para a gente dizer “chega de preconceito”, para a gente refletir sobre as intolerâncias religiosas e o que fazer contra as intolerâncias religiosas.

 

É uma data de reflexão. É uma data que a gente para. Não é feriado, mas muitas cidades do Brasil param para discutir o nível de intolerância que nós chegamos e o que fazer contra as intolerâncias. Foi preciso morrer uma ialorixá para a gente criar uma data. Parece meio sarcástico isso, meio macabro. Óbvio que não é apenas nessa data que a gente discute, mas é a marca [do dia].

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13 Comentário(s).

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Babalorissa Luiz Ty Osun  26.06.19 08h33
Parabenizo o Midia News pelo espaço concedido a um sacerdote para explicações e manifestações de sua crença e pensamentos. Ao Baba Bosco motumba e que Sango esteja sempre presente em nossas vidas. Abraços. Babalorisa LUiz T'y Osun
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konó  25.06.19 15h57
A religião Cristã também sofre preconceito, acho que quase todas as religiões sofre com preconceitos, são coisas de pessoas que se acham melhores do outras, mas no mas vamos seguindo a vida e desejando salvação eterna para todos em nome do Nosso Senhor Jesus Cristo.
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Edson Lara Pinto   24.06.19 13h01
Nos anos 2015e 2016 o centro espírita da virgem da imaculada Conceição Ile Ase Omo Ayra Bade foi ato de intolerância religiosa sim
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JUNIOR  24.06.19 11h52
Muito boa a entrevista dando um show com suas palavras e contato a história é toda sua trajetória da nossa cultura. PARABÉNS Bosco por nós dar essa aula de cultura que muitos desconhece. Espero que os preconceitos Leia e entenda pouco.
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Maristela Mendes   24.06.19 09h48
Obrigada amigo João Bosco pela aula sobre Religiões de Matriz Africana e suas formações no Brasil. Também nos fez rever o quanto o preconceito é latente no Brasil colonial e no Brasil atual.
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