Tinha pouco tempo de casa e havia acabado de emplacar a primeira manchete com um furo daqueles. Só que, em vez de sorrir de orelha a orelha, estava chateado: outra pessoa havia sido escolhida para fazer aquilo que, no jargão das redações, chamamos de suíte, a continuação da cobertura no dia seguinte.
Com o ímpeto dos tolos, procurei o tal colega para reclamar. Grandalhão e com uma voz que facilmente alcançava todos os cantos do prédio do Diário de Cuiabá, Anselmo Carvalho Pinto era apenas cinco anos mais velho que eu, mas já tinha amealhado o respeito e o reconhecimento de um veterano na casa.
Manchetes como a que eu lambia como uma cria preciosa eram para ele rotina desde que chegara recém-formado da federal de Mato Grosso do Sul. Repórter na essência, combinava uma apuração rigorosa com um texto fluído e consistente, leve e coeso, sem uma palavra sequer a mais ou fora do lugar.
É claro que não havia pedido para entrar na minha pauta. Cumprira simplesmente uma missão passada por nossa chefia comum. E em um tema acessório, banal, que fechou em menos de quinze minutos.
Ele poderia ter me mandado para algum lugar nada agradável. Ou simplesmente ignorado o foca de ombros caídos e olhos saltados que gaguejava ao seu redor. Mas esse não seria o Anselmo.
Num tom de voz muito abaixo do que era capaz, parou de escrever, olhou bem nos meus olhos e me disse algo mais ou menos assim:
“Rodrigão, escuta só: ou você está orgulhoso, ou está inseguro. E nenhuma dessas coisas são boas para quem quer ser jornalista”.
Fiquei um tempo em silêncio, pedi desculpas e voltei cabisbaixo para a minha mesa. Daquele dia em diante, ao longo de quase trinta anos de estrada, aquelas palavras ecoaram a cada vez que tentei, muitas vezes sem sucesso, lidar com as frustrações constantes do nosso ofício.
Seguro e humilde. É assim que vou sempre me lembrar do Anselmo. A união dessas características o fazia enxergar o potencial que os colegas nem sabiam possuir. E, mais do que isso, a se oferecer como um mestre, discreto e generoso, daquele tipo que se realiza vendo todos ao seu lado alcançarem o seu melhor.
Foi uma sorte danada tê-lo como chefe. Nunca titubeou em bancar pautas malucas pelos cantos mais obscuros de Mato Grosso. Uma vez convencido, não arredava o pé e investia toda a sua energia para que aquela reportagem, que não levaria seu nome, fosse sempre a melhor possível.
Foi um privilégio poder chamá-lo de amigo. Na mesma redação ou separados por muitos quilômetros de distância, sempre demos um jeito de manter contato, seja para compartilhar uma impressão sobre um livro ou filme, seja para tirar onda das bobagens que os políticos de todos os matizes não se cansam de operar.
E, no meio de tudo isso, ainda achamos tempo para levar adiante um hobby que, sem nenhuma intenção de ser mais do que isso, resultou na criação da cerveja Benedita, uma ideia bem cuiabana que hoje está em todos os supermercados da cidade pelas mãos competentes do pessoal da Louvada. Sim, foi uma baita honra poder chamá-lo de sócio.
Sigo tentando entender sua partida, Anselmo. E venho falhando miseravelmente desde domingo. Talvez, como costumam dizer, o tempo venha a trazer essas respostas e acalmar o coração de tanta gente que, como eu, segue em um luto que mistura perplexidade e lamento.
Hoje mesmo vi que o Putin teve a pachorra de convidar o Zelenski para uma conversa a sós e resolver a guerra. No Kremlin! Quase compartilhei o link contigo, na esperança de receber de volta um daqueles comentários irônicos, afiados e elegantes que eram sua especialidade.
Fica para a próxima, chefe. Confesso que por vezes voltei a ser orgulhoso ou inseguro, mas prometo que nunca vou me esquecer de você.
Rodrigo Vargas é jornalista em Cuiabá.
Entre no grupo do MidiaNews no WhatsApp e receba notícias em tempo real (CLIQUE AQUI).
0 Comentário(s).
|