Cuiabá, Quinta-Feira, 21 de Agosto de 2025
VINÍCIUS FRANCO
21.08.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Banalização da vida

Percepções criminológicas sobre assassinatos de gari e de morador de rua

São tempos de ebulição. Todos os dias, os jornais se fartam com o volume de novas notícias que despertam o interesse da população e, em meio a tarifaços, polarização política e à infância e à adolescência roubadas nas mídias digitais, algumas manchetes causam pouco alarde e, então, quase nos esquecemos do motivo essencial pelo qual existem os partidos políticos, a economia ou as redes sociais: a vida e o bem-estar humanos. Por isso, aliás, nunca é demais lembrar do pensamento moral kantiano que diz que o ser humano deve ser sempre fim, nunca um mero meio, o que me motivou a escrever estas linhas.

 

Esses dois episódios não apenas banalizam a vida humana, como também revelam o lado hipócrita e sombrio da sociedade

Nas últimas semanas, enquanto criminólogo, não pude ignorar as notícias da crueldade e da torpeza de dois assassinatos, que, ao mesmo tempo que escandalizam a banalização da vida humana, também materializam fenômenos que há muito são objeto de estudo da Criminologia e da Sociologia Jurídica.

 

Há cerca de um mês, na noite de 13 de Junho, sob o Viaduto 25 de Março, na região central de São Paulo, o morador de rua Jeferson de Souza foi assassinado por um oficial da Força Tática da Polícia Militar de São Paulo (com a participação de um segundo militar), com três tiros de fuzil à queima roupa.

 

À época, a versão registrada pelos PMs foi a de que Jeferson, em “estado alterado”, teria tentado tomar a arma de um deles. Mas foi no início desse mês, em 05 de Agosto, que as imagens das câmeras corporais dos policiais, obtidas pela imprensa, vêm a público e desmentem a versão inicial. No vídeo, Jeferson aparece desarmado, acuado, chorando, de mãos na cabeça e sem oferecer qualquer risco; em certo momento, um dos policiais cobre a lente da bodycam com as mãos, enquanto o oficial militar efetua os três disparos, a sangue frio, na cabeça, no tórax e no braço, quando a vítima já estava subjugada.

 

Ainda não superados os desdobramentos desses fatos, na semana passada (11/08), depois de uma confusão de trânsito em Belo Horizonte/MG, o gari Laudemir de Souza Fernandes (44 anos) foi morto a tiro pelo empresário Renê da Silva Nogueira Júnior. Após o crime, Renê fugiu com o carro, sendo localizado mais tarde em uma academia de alto padrão, na região Oeste de BH, onde foi preso. Segundo o resultado da perícia, divulgado na última sexta-feira, a arma do crime foi a pistola calibre .380 de uso particular de sua esposa, Ana Paula Nogueira, delegada da Polícia Civil de Minas Gerais.

 

Renê Junior, 47 anos, em seu perfil profissional no Linkedin e no Instagram (já excluídos) se apresentava como empresário e executivo de alta performance, com extenso histórico corporativo no setor de alimentos e bebidas.

 

Além de construir um branding típico de influenciadores e coachs corporativos, baseado na performance e na meritocracia, Renê se descrevia como “Christian, husband, father & patriot” (cristão, marido, pai e patriota) nas redes sociais e transmitia aos seus quase 30 mil seguidores uma autoimagem ligada a bandeiras ideológicas implícitas alinhadas aos valores conservadores e tradicionais.

 

Renê representa a célebre imagem do “homem de sucesso”, e, com boas doses de presunção, um retrato da classe média com aspirações de ascender ao topo da pirâmide social; a mensagem é clara: nada nem ninguém pode atravessar seu caminho.

 

Diante dos acontecimentos, pode-se perguntar: por que alguém que se identifica como uma pessoa de valores religiosos e apegada à família é capaz de tirar a vida de um trabalhador por um motivo tão fútil quanto uma briga de trânsito e, logo após, consegue ir para uma academia treinar? Por que policiais militares, que deveriam agir dentro da estrita legalidade e proteger a vida da população, atiram e matam um morador de rua enquanto ele chora de joelhos pela própria vida? O empresário mineiro e os policiais de São Paulo enxergavam aqueles homens como sujeitos de direitos comuns ou como cidadãos de segunda classe? Quanto valia a vida desses dois homens assassinados friamente para seus algozes?

 

Essas provocações não contém um apelo justiceiro ou apregoa um punitivismo de exceção, mesmo porque, apesar de conhecermos bem os fatores que circundam tanto a inflação probatória do testemunho policial (a despeito do que a doutrina penal americana tem chamado de testlying – mentira policial deliberada) quanto a neutralização da culpa de determinadas categorias de pessoas (o famoso “passar pano”), os fatos apontam que os acusados estão presos preventivamente e responderão o devido processo penal, com uma sentença judicial ao final.

 

A intenção é refletir sobre os nefastos aspectos sociológicos e as representações sociais que se relacionam com esses eventos.

 

Ainda que se conclua que a delegada de Polícia, Ana Paula Nogueira, não soubesse que seu marido estava utilizando a pistola registrada em seu nome, a ironia é que as balas que ceifaram as vidas de Jeferson e de Laudemir foram disparadas por armas sob a cautela de pessoas que deveriam proteger todos os cidadãos, sem nenhuma distinção.

 

No entanto, o fato inegável é que não é surpresa para ninguém que algumas vidas, frequentemente, têm quase nenhum valor para o Estado e para as classes hegemônicas, tão fielmente retratadas pelo empresário de sucesso Renê.

Laudemir limpava as ruas de sua cidade; exercia uma profissão invisibilizada e cercada de preconceitos e desvalorização; realizava um trabalho “sujo” que quase ninguém quer fazer e que, como um estigma, faz a sociedade associar o objeto do trabalho (lixo) ao trabalhador.

 

Jeferson fazia das ruas e dos viadutos da cidade a sua casa; representava a desordem que os centros urbanos querem esconder ou aniquilar; nordestino, foi ganhar a vida na cidade grande, mas se viciou em drogas; ele não tinha nenhuma utilidade para a sociedade ou para a economia; nas representações sociais, era a própria sujeira da sociedade, o lixo humano gerado pelas cidades.

 

A história de vida e o fim cruel de Laudemir e de Jefeson não se desunem de um contexto de racismo, aporofobia (medo e aversão a pessoas pobres) e do profundo desprezo social das classes privilegiadas com as classes subalternizadas e economicamente excluídas.

 

Bauman, sociólogo polonês, ensina que na sociedade capitalista o convívio humano assume uma forma Jano, Deus de duas faces da mitologia romana, sendo que uma das faces, dotada de liberdades e direitos, é voltada para determinadas classes privilegiadas, enquanto a outra face, voltada para aquelas classes despossuidoras e subalternas, é coercitiva e supressiva.

 

No moderno arranjo social capitalista, meritocrático e consumerista, os indivíduos valem tanto quanto eles produzem de riqueza e consomem, ou seja, sua utilidade para a sociedade é medida pela riqueza material, e isso definirá qual face social e estatal estará voltada para si e se ela é lhe cobrirá de direitos e de prestígio.

 

Essa dinâmica excludente definirá quem é mais ou menos útil ou necessário, mais ou menos supérfluo e descartável.

 

Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED, Ligado ao Ministério do Trabalho, um gari em Belo Horizonte ganha entre R$1.394 e R$2.401. O gari Laudemir, não diferente do morador de rua Jeferson, era um individuo que ocupava a base da pirâmide social, uma subclasse de trabalhador, que ainda hoje é obrigada a conviver com representações sociais estereotipadas sobre o que figura como um trabalho mais ou menos digno e com valores enraizados na cultura escravocrata e hierárquica da sociedade Brasileira.

 

Se é verdade que a exclusão econômica é a mãe de todas as desigualdades, no Brasil, é impossível desvincular a exclusão econômica dos aspectos raciais. A sociedade brasileira ainda carrega marcas profundas do período colonial e escravocrata, que estruturou hierarquias raciais e sociais a partir da exploração do trabalho forçado. Atividades manuais, repetitivas e de limpeza eram atribuídas às pessoas escravizadas - em sua maioria negras - e vistas como indignas para os brancos e as elites. Essa lógica deixou um legado simbólico: até hoje, trabalhos relacionados à limpeza, como recolher o lixo urbano são associados a uma suposta “inferioridade social”.

 

O processo histórico conforma nossas representações sociais, tanto sobre funções vistas como de “baixo prestígio”, como a do gari, quanto sobre o que é um cidadão de segunda categoria, o que reforça uma cultura elitista e hegemônica de desigualdades e que separa aqueles “de cima” daqueles “de baixo”.

 

São essas representações sociais que impedem que as classes privilegiadas enxerguem como iguais ou como detentoras de direitos em igual patamar as classes excluídas e subalternas, encarnadas por Laudemir e Jeferson. Ao contrário! Essa massa de excluídos e marginalizados terminam por representar os males e desordens da sociedade. Elas nos forçam a lembrar da grande inconveniência da desigualdade.

 

Imagine só a perturbação: “Além de ser pobre e viciado, ainda “enfeia” as ruas e praças da cidade dos sonhos, que eu idealizei para viver com a minha família”. Ou ainda: “Que absurdo eu me atrasar para o meu treino de musculação por conta do trabalho de alguns catadores de lixo!”

 

Já escrevi anteriormente sobre o processo jurídico e sociológico que envolve a fabricação dos inimigos sociais e, nesse processo, os valores herdados historicamente que conformam as representações e o imaginário coletivos nos impulsionam a ver as classes subalternizadas como diferentes de “nós”, ou seja, diferentes do grupo ao qual pertencemos ou ao qual queremos pertencer.

 

As instituições de controle, entre as quais se destacam as polícias e seus agentes, são igualmente influenciadas pelas representações sociais da sociedade na qual estão inseridas, muitas vezes, reverberando com violência extrema os clamores da opinião pública, e, assim, operando com uma visão hegemônica, elitista e excludente contra as classes subalternas, com as quais, naturalmente, os agentes do Estado também não se identificam.

 

Assim como o empresário de Belo Horizonte, os policiais militares que mataram Jeferson em São Paulo, não tinham nenhuma empatia por aquele ser humano, não viam nele correspondência em nenhum aspecto, logo, negaram sua própria humanidade e, negando-lhe a humanidade, qualquer mal pode ser infligido a ele sem remorsos.

 

Os grupos sociais excluídos e subalternizados aos quais pertenciam Laudemir e de Jefeson têm todas as características necessárias para representar os inimigos sociais. Eles adquirem qualidades assustadoras, aterrorizantes ou repulsivas. São sujos e perigosos e, num contexto mais amplo, representam males sociais, ervas daninha que a sociedade deve combater (e fazer desaparecer), ainda que seja a tiros.

 

Eles materializavam a miséria que ninguém suporta ver ao seu lado e a desigualdade incômoda que nos lembra dos descompassos da métrica capitalista; dão corpo e rosto para os resíduos pelos quais todos nós somos responsáveis.

 

A equação deste fenômeno já é conhecida pela Criminologia Crítica: eles representam as causas dos nossos problemas sociais (+) e são essencialmente diferentes de “nós”, (=) o que nos dá permissão para lhe causar violência.

 

Esses dois episódios não apenas banalizam a vida humana, como também revelam o lado hipócrita e sombrio da sociedade e de suas instituições. Quando Renê se reveste de uma narrativa e autoimagem de cristão, pai e patriota, esse enquadramento de “cidadão de bem” só existe entre seus iguais, sua família e no meio onde está inserido, porque fora de sua bolha a vida do outro não vale nada. Quando a polícia empunha um fuzil, frequentemente, é para proteger o “cidadão de bem”, como ele, policial, e não para proteger um morador de rua, contra o qual qualquer violência é justificável. Afinal, quem se importa com um morador de rua?!

 

Enquanto isso, seja por um extermínio subterrâneo realizado pelas forças policiais, seja pela convicção de alguns de que é possível ocupar uma casta superior na sociedade, na certeza de que um pacto implícito e invisível de impunidade os protegerá, outros trabalhadores e outros moradores de rua ainda serão assassinados covardemente.

 

A lógica vigente é que, para “nós”, para a nossa bolha, nosso grupo, nossos iguais, todos os direitos e privilégios quantos forem possíveis; para os “outros”, cujos problemas não nos pertencem e com os quais em nada nos identificamos, nenhum direito, sequer a vida. 

 

Vinícius de Moraes Franco é advogado, pesquisador e mestre em Direito.

 

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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