Vivencia-se, atualmente, uma realidade na qual memórias, comunicações e informações altamente sensíveis são armazenadas em dispositivos eletrônicos portáteis. Apesar da centralidade desses aparelhos na vida contemporânea, a atuação do Poder Judiciário brasileiro ainda não reflete, com a devida precisão, o grau de proteção constitucional que tais informações demandam.
A Constituição da República assegura, em seu artigo 5º, inciso X, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, consagrando, inclusive, o direito à reparação por eventuais danos materiais ou morais decorrentes de sua violação.
Além disso, o artigo 5º, inciso XII, estabelece o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, ressalvando a possibilidade de quebra apenas mediante ordem judicial, nos termos da lei, com finalidade específica de instrução penal ou investigação criminal. Trata-se de uma salvaguarda fundamental, que condiciona a atuação estatal à observância de parâmetros estritos de legalidade e proporcionalidade, sob pena de violação de direitos fundamentais.
Do mesmo modo, o inciso LXXIX, incluído recentemente no mesmo artigo constitucional, prevê o direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, condicionando sua regulamentação à legislação infraconstitucional. Tal dispositivo inaugura, de forma expressa, a proteção de um novo bem jurídico de natureza autônoma no ordenamento constitucional: os dados pessoais.
Não obstante esse arcabouço protetivo, observa-se, na prática forense, uma série de decisões judiciais que autorizam o acesso a dados armazenados em dispositivos móveis ou em nuvem, com fundamentações deficientes e dissociadas da complexidade que tais medidas impõem. A Justiça, por vezes, ainda equipara conteúdos digitais a documentos físicos arquivados em gavetas ou pastas.
A ausência de critérios objetivos e rigorosos para autorizar o acesso judicial a dados pessoais configura verdadeira fragilidade sistêmica. Tal lacuna revela-se particularmente grave quando as medidas invasivas alcançam conteúdos personalíssimos, direta e expressamente protegidos pelos incisos X, XII e LXXIX do artigo 5º da Carta Magna.
Nesse contexto, destaca-se a Lei Federal nº 9.296/1996, que regula a interceptação das comunicações telefônicas e estabelece os requisitos para sua decretação. Essa norma, voltada especificamente à seara penal, impõe procedimentos rigorosos à autoridade policial, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, conferindo maior proteção à intimidade frente a outras legislações infraconstitucionais.
Todavia, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal vêm decidindo, majoritariamente, que o acesso a dados já armazenados não se submete aos rigores da Lei nº 9.296/1996. Isso porque, segundo tais entendimentos, não haveria “interceptação” propriamente dita, mas mero acesso a registros preexistentes, os quais seriam análogos a documentos físicos, conforme previsão do artigo 232 do Código de Processo Penal.
Em razão disso, tem-se aplicado a Lei Federal nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), a qual estabelece princípios e garantias para o uso da internet no Brasil. Entretanto, essa norma não foi concebida com enfoque na persecução penal, tampouco contém os mesmos critérios rigorosos exigidos pela Lei nº 9.296/1996 para fins de acesso a dados sensíveis.
O Marco Civil, ademais, não dispõe sobre a utilização de softwares espiões (spywares) por agentes públicos, tampouco regulamenta de forma minuciosa o acesso aos conteúdos armazenados em nuvem ou em dispositivos móveis. Ainda assim, vem sendo aplicado como base jurídica para legitimar essas medidas.
Embora se sustente que o acesso a dados armazenados se limita aos “dados em si”, enquanto a interceptação telefônica alcançaria comunicações momentâneas, essa distinção ignora que o conteúdo armazenado em smartphones e servidores virtuais permite reconstruir, de forma muito mais ampla, a intimidade do indivíduo. A ausência de critérios claros quanto ao que será acessado contribui para a banalização da medida judicial e reforça práticas investigativas invasivas.
Diferentemente da interceptação, que capta apenas diálogos futuros a partir da ordem judicial, o acesso a dispositivos móveis permite vasculhar todo o passado digital do investigado: vídeos, fotos, histórico de navegação, registros bancários, e-mails, senhas, aplicativos, anotações pessoais, entre outros elementos, muitos dos quais sequer possuem relação com os fatos investigados.
Diante desse panorama, é imprescindível que o sistema de justiça reconheça a necessidade de resguardar a privacidade digital com o mesmo grau de proteção conferido à residência física. O telefone celular, no século XXI, é a extensão da esfera privada, sendo ilegítimo seu acesso sem decisão judicial devidamente fundamentada, lastreada em elementos concretos e critérios normativos objetivos.
Vinícius Segatto é advogado.
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