Dois episódios recentes chamaram atenção para um mesmo problema: a intolerância crescente no ambiente universitário. Em Curitiba, o advogado Jeffrey Chiquini e o vereador Guilherme Kilter (Novo-PR) foram hostilizados por estudantes e retirados do prédio histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob escolta de seguranças e com apoio da Polícia Militar.
Há uma diferença fundamental entre manifestar-se contra uma ideia e impedir que ela seja exposta
O evento — uma palestra sobre a atuação do STF — acabou inviabilizado em meio a empurrões, gritos e bombas de efeito moral do lado de fora. Relatos indicam agressões leves e ocupação prévia do espaço pelos manifestantes, o que impediu a realização do ato.
No dia seguinte, em Orem, Utah (EUA), o influenciador conservador Charlie Kirk, fundador da organização estudantil Turning Point USA, foi morto a tiros durante uma fala na Utah Valley University.
O elo entre esses dois episódios é simbólico e preocupante: ambos ocorreram em universidades — instituições que, por natureza, deveriam ser espaços de convivência democrática, pesquisa e pluralidade de ideias. Desde a Idade Média, o termo universitas designa a comunidade de mestres e estudantes.
A própria etimologia remete a totalidade, universalidade e corpo coletivo. A Constituição brasileira reforça essa missão: o
artigo 206 garante a liberdade de aprender, ensinar e divulgar o pensamento, enquanto o
artigo 207 assegura a autonomia didático-científica.
Essa não é apenas uma reflexão teórica. Como graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso, e hoje advogado atuante, tive a oportunidade de viver um período em que o debate acadêmico era amplo, livre e, sobretudo, respeitoso. Divergíamos em muitas questões: da política ao direito, mas a pluralidade de opiniões era vista como riqueza, não como ameaça.
Foi nesse ambiente, de embates duros, porém civilizados, que se consolidou a convicção de que a universidade só cumpre sua vocação quando consegue acolher a diferença sem transformar a discordância em hostilidade.
O direito à manifestação é inegociável e faz parte da vida em sociedade. Mas há uma diferença fundamental entre manifestar-se contra uma ideia e impedir que ela seja exposta. Quando manifestações avançam para a ocupação de espaços, intimidação física e inviabilização de eventos, a linha entre o legítimo protesto e o veto autoritário é ultrapassada.
Foi o que ocorreu em Curitiba: a discordância com os convidados poderia ter sido expressa em cartazes, debates paralelos ou manifestações críticas, mas não no bloqueio do acesso e na escalada de hostilidade.
A tragédia em Utah, por sua vez, mostra até onde a intolerância pode chegar quando a violência é normalizada. O assassinato de um palestrante em pleno campus universitário é a face mais extrema de uma escalada que vem sendo observada em várias universidades americanas.
Esses fatos revelam uma erosão preocupante do pacto de convivência democrática. Universidades não podem se tornar reféns do grupo mais barulhento, nem tampouco expor alunos e convidados a riscos de agressão.
Preservar a liberdade acadêmica exige regras claras para o exercício do protesto, protocolos de segurança eficazes e, sobretudo, compromisso institucional com a pluralidade de ideias. Isso não significa neutralidade diante de discursos opostos, mas a certeza de que a resposta não pode ser imposta pela força.
Quando a discordância é substituída pela hostilidade e o debate cede espaço à intimidação, perde-se a essência de um espaço criado para o confronto civilizado de ideias.
Os episódios em Curitiba e Utah, cada um a seu modo, expõem uma crise de civilidade que ameaça esse ideal. Reitores, colegiados e autoridades precisam agir não apenas reativamente, mas com planejamento e prevenção.
Garantir o direito de aprender, ensinar e conviver na diferença é um dever institucional. Só assim a universidade poderá continuar sendo o lugar onde ideias fortes se confrontam com firmeza e respeito, sem que ninguém precise de escolta para entrar, e muito menos perca a vida por se expressar.
Jorge Jaudy é advogado em Cuiabá.