O índice de mortalidade materna é um dos mais sensíveis indicadores de civilização de um país. Quando uma mulher morre durante a gestação, o parto ou o puerpério, a sociedade inteira revela suas falhas estruturais. Em 2023, o Brasil registrou 52 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos (DataSUS), quase o dobro da meta assumida na ONU de reduzir o índice para 30 até 2030 e muito distante dos patamares de países desenvolvidos, que giram em torno de 10.
Em Mato Grosso, a realidade é ainda mais grave. Em 2023, o estado registrou 67 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos e mantém médias historicamente acima da nacional. A série recente é reveladora: 64,6 em 2019, 89,4 em 2020, o salto dramático para 148,7 em 2021, queda para 49,9 em 2022 e nova elevação em 2023. Essa oscilação demonstra um padrão de fragilidade institucional, incapaz de sustentar uma política de cuidado contínua, estruturada e segura.
Os números apontam para uma política pública que falha em proteger mulheres em um dos momentos mais vulneráveis da vida. Revelam também algo mais incômodo. Segundo organismos de saúde, inclusive o Ministério da Saúde, 92% das mortes maternas no Brasil são evitáveis. Se poderiam ser evitadas, por que continuam acontecendo?
A resposta envolve descumprimento de protocolos, falhas de vigilância, precarização da atenção básica e um modelo cultural que desvaloriza a saúde da mulher. A morte materna não é um acidente estatístico. É o sintoma de um sistema que naturalizou o risco e o improviso. Essa negligência ganha contornos ainda mais dramáticos quando se observam casos recentes em Mato Grosso, como a morte da arquiteta Larissa Pompermayer Ramos, de 29 anos. Semanas antes, a advogada Paula Proença Castela Ribeiro, de 35 anos, também morreu após complicações gestacionais.
São histórias distintas, famílias diferentes, mas com um denominador comum. Falhas evitáveis no cuidado, na prevenção, na regulação e no acompanhamento clínico. Atrás de cada caso há uma criança que cresce sem mãe, uma família destruída e uma sociedade que insiste em tratar essas perdas como fatalidades. Não são fatalidades. São falhas que se repetem porque a violência contra a mulher no parto ainda é estrutural no Brasil.
No entanto, a mortalidade materna é apenas a face mais extrema desse problema. Há um universo de violências e sequelas que não aparecem nas estatísticas oficiais. São mulheres que sobrevivem, mas carregam mutilações físicas, traumas emocionais, partos marcados por desrespeito e crianças que também sofrem consequências irreversíveis. Para além dos óbitos que chocam o país, existe uma segunda camada de violações que atinge aquelas que sobrevivem, muitas vezes com marcas permanentes. É nesse ponto que a discussão sobre mortalidade se encontra com a violência obstétrica, fenômeno silencioso, recorrente e ainda pouco enfrentado pelo Brasil.
A violência obstétrica não é exceção. É estrutural e agravada pela ausência de dados oficiais. O país não possui sistema nacional de vigilância que registre esse tipo de violação, o que mantém o problema invisível. Revisões científicas recentes mostram que grande parte das mulheres não reconhece a violência sofrida e que a subnotificação é profunda e persistente.
A pesquisa nacional mais abrangente sobre o tema, realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc em 2010, identificou que uma em cada quatro brasileiras sofre violência obstétrica. Em estudos mais recentes, o quadro é ainda mais grave. Pesquisa de 2023 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro revelou que duas em cada três mulheres fluminenses já vivenciaram práticas classificadas como violência obstétrica. Os relatos se repetem: humilhação, negligência, procedimentos sem consentimento, demora no atendimento e protocolos ignorados. A cultura do “a mulher aguenta” persiste, e mata.
A responsabilidade jurídica por essas mortes – ou violências - precisa ser tratada com seriedade. Falhas na condução do parto, omissões no atendimento, negativa de procedimentos, demora injustificada ou ausência de vigilância pós-parto configuram violações ao direito à saúde, à vida, à dignidade e ao planejamento familiar. Esses fundamentos permitem responsabilização civil, administrativa e, em alguns casos, penal. A família que perde uma mãe tem direito à verdade, à reparação e à justiça.
O caso de Laísa Júlia Reis Oliveira Lira e de sua filha recém-nascida é um dos processos que acompanhamos e expõe, com clareza dolorosa, o impacto de falhas evitáveis no cuidado obstétrico. Laísa buscou atendimento três vezes em menos de 48 horas, apresentando febre alta, dor intensa, elevadíssima frequência cardíaca e sinais evidentes de sofrimento fetal, com o quadro de infecção em evolução, mas, mesmo assim, não foi submetida a exames no primeiro atendimento. No segundo atendimento, não se providenciou exames em regime de urgência e, no terceiro atendimento, foi negada internação e realização do parto por falta de leito. Quando finalmente foi submetida à cesariana de emergência, em outro hospital, já não havia suporte materno ou fetal suficiente. Era tarde demais.
A ação movida por sua mãe, Paolla Reis, evidencia que não se trata de um evento isolado, mas de um padrão de negligência que transforma protocolos ignorados em mortes anunciadas, violações diretas ao direito à vida, à dignidade e à proteção que cada gestante deveria receber. Nesse debate, o Direito tem papel essencial, que é identificar responsabilidades, assegurar reparação, pressionar por mudanças e impedir que a dor de uma família seja reduzida a mais um número na tabela do ano seguinte.
Ciro Rodolpho Gonçalves é advogado, auditor público interno, especialista em auditoria governamental.
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