Cuiabá, Quarta-Feira, 26 de Novembro de 2025
ROBERTO BOAVENTURA SÁ
26.11.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Do palácio à prisão

Memes falam muito da felicidade para a maioria de nossa população

Com a prisão do inominável ex-presidente da República, ocorrida no último dia 22, cada brasileiro que consegue entender a dimensão disso tem o amplo e irrestrito direito de se manifestar livremente. Assim, muito na esteira do conteúdo de “Vai Passar”, canção de Chico Buarque para os momentos já bem próximo do funeral da ditadura militar, imposta ao Brasil pelos golpistas de 64, vale, sim, extravasar. Para isso, os incontáveis memes, que voam pelas redes sociais, falam muito neste momento de felicidade para a maioria de nossa população.

 

De minha parte, como não sei fazer memes, resolvi escrever sobre a importância dessa prisão, posto o quão difícil, mas muito significativo, foi ver o país ter conseguido forças para a preservação do seu Estado Democrático de Direito. Por conta dessa preservação, na linha do tempo, foi-nos possível acompanhar seu aguardado indiciamento por diversos e gravíssimos crimes, dentre os quais estava a tentativa de golpe de Estado, assistir, de camarote, a seu digno e incisivo julgamento, e respirar aliviado por sua merecida condenação.

 

Contudo, longe de pretender abarcar uma ampla avaliação de todos os significados dessa prisão, que não são poucos, circunscrevo-me a uma curiosidade que pode caber em datas e acontecimentos muito simbólicos para a população de qualquer país: o que cada um de nós fazia no dia em que o inominável foi preso, repito, mesmo em caráter preventivo, por ter tentado se desvencilhar de sua tornozeleira e fugir, como já fizeram alguns de sua espécie?

 

De minha parte, vejam que feliz coincidência: mantive minha programação de sair bem cedo de onde moro atualmente rumo a São Paulo, de onde apenas 80 km me distanciam. Lá, mais no início da noite, me juntaria com um grupo de amantes das artes para mais um dos saraus que são realizados na residência de um excelente compositor, instrumentista e cantor. Detalhe muito importante, mas tão naturalizado em tempos de normalidade democrática: para o encontro desse seleto grupo, o anfitrião do sarau nos convidou por meio mensagem de texto, via whatsapp, o que soa elementar nos dias atuais.

 

Do detalhe acima exposto, afirmo, de pronto, que o sarau do qual pudemos tranquilamente participar no dia em que o inominável foi preso não teria ocorrido, caso o golpista, hoje, mais um presidiário de nosso país, tivesse tido o sucesso desejado e arquitetado. Motivo óbvio: estaríamos imersos numa ditadura, capitaneada ou por ele ou por algum fardado de sua própria tropa. Sim. Alguém descarta a possibilidade de um golpe dentro do golpe, caso o infortúnio tivesse sido concretizado? Até que ponto golpistas fardados suportariam a subordinação a um ser tão limitado, como o inominável?

 

Seja como for, aquela mensagem no whatsapp nos convidando para o sarau, ou não viria ou viria toda cifrada, na intenção de despistar “...hipócritas, disfarçados, rondando ao redor”, dos quais Gilberto Gil já nos falara em “Não chores mais”.

 

Agora, mais um detalhe, qual seja, a coincidência da qual falei acima: a motivação do sarau realizado no dia 22 – mas idealizado bem antes, e sem prejuízo de outras homenagens, como as que poderiam ter sido feitas ao Jards Macalé, o “Anjo Torto”, falecido há poucos dias – era manter vivas a memória e a obra de Lô Borges, morto em 02 de novembro. Cada um dos participantes do sarau ficava encarregado de falar ou cantar algo que reverenciasse o já saudoso mineiro do Clube da Esquina.

 

De sua vasta obra, eu havia escolhido “Paisagem da Janela”, composta em parceria com Fernando Brant, em 1972, ápice da censura em nosso país. Essencialmente, sua letra retrata a atmosfera pesada e perigosa que a censura dos golpista de 64 nos impunha a todos, mas mais especificamente a quem conseguia raciocinar sobre aquele momento vivido, opondo-se a ele. Assim, nessa canção, os versos “Quando eu falava desses homens sórdidos / Quando eu falava desse temporal” são imagens linguísticas da crueldade de um tempo sombrio, de perseguições, torturas e mortes; tempo que se contrapunha à tranquilidade vivida antes do golpe, representada, na canção, pela “igreja”, “muro branco” e “voo pássaro”.

 

Enfim, o sarau que nos foi possível realizar no dia 22 teve um sabor ainda mais marcante do valor da democracia. Sem medo algum de ter em nosso meio eventual hipócrita nos “ob-observando”, homenageamos Lô Borges e outras vozes (reais, e não advindas de surtos psicóticos) que sempre souberam do valor e da necessidade de defesa que as democracias, sempre em risco, demandam de nós todos.

Salve(m) a Democracia. Sempre.

 

PS.: como a prisão de que me refiro aqui é provisória, o mérito das reflexões expostas permanece, mesmo se alguma liminar judicial ou coisa do gênero der ao “ilustre” presidiário algum direito de sair de onde se encontra no momento da escritura deste artigo.

 

Roberto Boaventura da Silva Sá é Dr. em Ciências da Comunicação/USP.

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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