O dia 21 de outubro é o Dia Internacional da Mulher Maravilha. É uma data de comemoração dos fãs, pela celebração da primeira aparição da personagem no dia, no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial. O criador foi Willian Moulton Marston, um psicólogo norte-americano e defensor da igualdade feminina, que acreditava que o mundo seria melhor, se governado por mulheres.
Ao criar Diana Prince, Marston tentou romper com o estereótipo da mulher passiva e submissa, apresentando uma personagem que combinava força física, beleza e compaixão. Contudo, mesmo a sua concepção original já continha ambiguidades. Ela surgiu vestida com cores patrióticas, carregando o escudo dos Estados Unidos e o laço da verdade, que se constituíam em instrumentos simbólicos de poder, mas, também de controle. Sua imagem oscilava entre a rebeldia e a domesticação.
O feminismo, especialmente nos anos 1960 e 1970, reinterpretou essa personagem. Para muitas militantes, a Mulher Maravilha era um espelho possível de empoderamento. Quando Gloria Steinem, uma das principais líderes feministas norte-americanas, colocou a heroína na capa da primeira edição da revista Ms. Magazine, em 1972, ela a resgatou como símbolo de resistência, autonomia e liderança feminina. Naquele contexto, a Mulher Maravilha se tornava mais do que uma personagem de quadrinho, passando à metáfora de um ideal de liberdade, num mundo ainda dominado por estruturas patriarcais.
Todavia, o olhar feminista atual tem se tornado mais crítico. Teóricas como bell hooks e Judith Butler nos lembram que o empoderamento não pode ser confundido com mera representação simbólica. O poder de uma mulher vestida de heroína não é o suficiente, se as demais continuam presas às estruturas de desigualdade. A estética da força, músculos, armaduras e a beleza inatingível pode reforçar padrões de gênero que o próprio feminismo tenta desconstruir. Em outras palavras, quando a Mulher Maravilha é transformada em produto cultural de massa, passa a ser mercadoria.
A personagem vive em um limiar, justamente no binarismo que queremos extirpar: entre a deusa e a mortal, entre o ideal e o real. Para muitas meninas e mulheres, ela representa a possibilidade de existir fora das caixinhas impostas, ou seja, de ser forte, autônoma e compassiva ao mesmo tempo. Mas, ao mesmo tempo, ela também perpetua a ideia de que é preciso ser extraordinária para ser reconhecida. O mito da “mulher que dá conta de tudo” é uma armadilha que aprisiona, com a falsidade de libertar. A sociedade, ao idolatrar a super-heroína, se esquece de garantir condições dignas às mulheres reais que enfrentam violências, salários desiguais, sobrecarga de trabalho e falta de representatividade política.
Por óbvio que o viés interseccional, desenvolvido por autoras como Kimberlé Crenshaw, e difundido no Brasil por pensadoras como Djamila Ribeiro, reforça que o ideal de Mulher Maravilha não contempla todas as mulheres. O corpo branco, heterossexual e padronizado da heroína clássica exclui a multiplicidade de mulheres com as suas vivências. Quando o empoderamento é representado apenas por um tipo de corpo, ele deixa de ser libertador e se torna excludente. O verdadeiro avanço feminista está em multiplicar as vozes e rostos da resistência.
Ainda assim, a Mulher Maravilha conserva um papel simbólico importante. Ela abre brechas no imaginário, questionando a ideia de que o heroísmo é privilégio masculino, inspirando gerações a enxergar a força feminina como parte da humanidade, e não como exceção. Quando a vemos lutar, não é apenas contra monstros e deuses, mas contra as estruturas de dominação que tentam reduzir o feminino a objeto ou suporte.
Ressignificar a Mulher Maravilha, portanto, é um gesto político. É reconhecer que a verdadeira maravilha não está no avião invisível ou no laço da verdade, mas na coragem cotidiana das mulheres que resistem ao silenciamento, exigindo por igualdade. Enquanto a heroína da ficção enfrenta monstros e vilões, as mulheres reais enfrentam jornadas triplas, desigualdade salarial, violência doméstica, assédio e falta de representatividade. Não há superpoder que compense a ausência de políticas públicas e de justiça social.
Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública estadual e mestra em Sociologia pela UFMT.
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