A provável indicação de Jorge Messias, servidor de carreira da Advocacia-Geral da União, ao Supremo Tribunal Federal consolida uma tendência que já virou regra – o STF tornou-se o ápice da carreira burocrática brasileira. O Supremo de 2025 é a instância decisiva de tudo, desde prisões provisórias em comarcas de 1ª instância até temas como aborto, alíquotas tributárias e mandatos eletivos em grau recursal do TSE.
O STF deixou de ser apenas um tribunal: tornou-se o ponto culminante da tecnoburocracia nacional. Se confirmado, Messias não apenas integrará a mais alta Corte do país, mas também poderá chegar à sua presidência, assumindo, por consequência, o comando do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça. Nada trivial para um tecnocrata da AGU, muito conceituado entre os cardeais do partido do presidente.
Juízes, promotores e delegados, assim como auditores, diplomatas e advogados públicos, compõem a tecnoburocracia estatal: uma elite meritocrática que ascende por concurso, não por voto. Sua missão deveria ser clara: fazer valer a lei, não reinventá-la por interpretação excessiva.
A tecnoburocracia é a fusão entre a racionalidade técnica da tecnocracia e a estrutura hierárquica da burocracia. Nesse modelo, o poder passa a ser exercido por especialistas, economistas, engenheiros, administradores e juristas, que decidem em nome da eficiência e da técnica, guiando tanto o Estado quanto as grandes corporações.
Como define Luiz Carlos Bresser-Pereira, a tecnoburocracia representa a ascensão de uma nova elite, que combina competência técnica e poder administrativo, conduzindo políticas públicas sob o pretexto da racionalidade científica e econômica. Mas, e aqui está o ponto cego, nem sempre a escolha é técnica, nem o critério é eficiente.
Muitas vezes, o discurso da neutralidade serve apenas para maquiar decisões ideológicas ou atender a interesses de grupo. A embalagem é técnica; o recheio é político. O modelo, que parece racional e moderno, é, na verdade, perverso. Ele corrói a legitimidade democrática ao concentrar o poder em mãos de especialistas não eleitos, enfraquecendo a participação cidadã.
A tecnoburocracia tende a preservar seus privilégios, manipular o consumo e a opinião pública e expandir a máquina estatal, tornando o sistema mais lento, autossuficiente e fechado sobre si mesmo. A corrupção da tecnocracia transforma o ideal de eficiência em instrumento de controle e dominação; o poder pela técnica, e não pelo voto.
O professor Bresser-Pereira chama isso de capitalismo burocrático, um sistema que redefine o capitalismo em moldes “burocrático-corporativos”. Essa elite, formada por tecnocratas, gestores e altos funcionários, opera sob a lógica da racionalidade instrumental, uma lógica fria, orientada por meios e não por fins, em que o humano é substituído pelo processo.
As críticas da Escola de Frankfurt ecoam aqui com força. Para Adorno e Horkheimer, a técnica, que deveria libertar o homem, converteu-se em instrumento de dominação. Marcuse alertou para o nascimento do “homem unidimensional”, conformado, incapaz de pensar criticamente, exatamente o tipo de sujeito que a tecnoburocracia precisa para se perpetuar: o pacato cidadão.
Habermas foi além: ao identificar a “colonização do mundo da vida”, mostrou como a lógica técnica e burocrática invade a cultura, a comunicação e a vida cotidiana, esvaziando a autonomia cidadã e transformando o diálogo em processo. No Brasil, essa engrenagem mostra sua face mais explícita.
O conceito de capitalismo burocrático, formulado por Bresser-Pereira, ajuda a compreender como a tecnoburocracia se entanhou nas grandes corporações estatais e privadas, JBS, Odebrecht, Andrade Gutierrez e OAS, que se tornaram epicentros de um poder patrimonialista travestido de eficiência. Esses conglomerados funcionam como extensões empresariais do Estado tecnoburocrático, operando em harmonia com elites financeiras, políticas e jurídicas, como demonstram reportagens e investigações amplamente noticiadas pela imprensa nacional, entre elas o caso Zampieri, que trouxe à tona discussões sobre corrupção e influência indevida em decisões judiciais.
O sistema político brasileiro tornou-se um laboratório da tecnoburocracia, o mais perverso dos regimes: aquele em que o poder migra das urnas para o establishment funcional do Estado. O governo é composto por grupos de interesses corporativos públicos e privados que vivem do Estado e para o Estado, acreditando-se neutros, mas moldando um Estado que vive para si.
No auge da crise humana, a máquina pública e seus sindicatos se ressentiam da PEC 186/2019, que pretendia conter reajustes e rever carreiras. Enquanto faltava oxigênio em Manaus, havia manifestações corporativas em Brasília, manifestos sindicais da época afirmavam que o Executivo se aproveitou da crise humanitária para impor limites ao funcionalismo (Nota Técnica nº 257 do DIEESE).
Contudo, não se deram conta de que receber os proventos em dia durante a crise de mobilidade da Covid-19, quando não havia geração de riquezas, significava que o Estado estava pagando o custeio da folha com mais dívida pública. Em outras palavras: a renda era transferida para o topo da pirâmide, enquanto o boleto da crise ia para a base, via inflação futura.
Primeiro a folha, depois o povo. Segundo o relatório Contas do Governo – 2020 (TCU), o déficit do regime previdenciário dos servidores civis foi de R$ 48,6 bilhões, e o sistema de proteção social dos militares custou R$ 51,5 bilhões, somando um rombo de R$ 100 bilhões.
A tecnoburocracia, no entanto, não se contenta com vencimentos e estabilidade. Multiplicam-se os chamados “penduricalhos”: gratificações, verbas indenizatórias, auxílios de toda sorte e incorporações que, sob aparência legal, funcionam como brechas para burlar os limites constitucionais de remuneração. São mecanismos de autoproteção que, na prática, perpetuam privilégios e distorcem o princípio da isonomia, transformando o serviço público em um sistema de castas.
Importante distinguir: os servidores aqui criticados não são os enfermeiros, praças das Forças Armadas, os policiais de baixa patente, os professores e assessores, as formiguinhas que fazem o Estado funcionar. Esses compõem a base sacrificada do funcionalismo, os que pegam ônibus, cumprem plantões e enfrentam a precariedade cotidiana. A crítica dirige-se à cúpula da tecnoburocracia, a elite blindada do serviço público, que fala em eficiência, mas vive de exceções e verbas extraordinárias.
Durante a pandemia, o contraste ficou evidente: enquanto o governo federal mantinha o teto de R$ 44 bilhões para o Auxílio Emergencial, destinado a 68 milhões de brasileiros sem renda, conforme a PEC Emergencial 186/2019 (EC 109/2021), a despesa total com pessoal da União ultrapassava R$ 344,6 bilhões.
É o Estado que consome mais do que serve, e ainda cobra imposto para sustentar seu próprio desequilíbrio. A União fala de Brasília, decide sobre o Brasil, mas conhece pouco o país real. Discute terra indígena, meio ambiente e questão fundiária com a frieza de quem nunca pisou em chão batido. É o Estado autorreferente, autoprotetor e autossuficiente, uma engrenagem que se serve a si mesma, e ainda tem seus caprichos ideológicos, como se viu no caso do Posto da Mata, em Alto Boa Vista (MT).
A tecnoburocracia, corrompida, veste terno slim, fala em governança e eficiência, mas continua fiel ao mesmo instinto: manter o poder em casa. Sob o verniz da racionalidade técnica, persiste a velha lógica da dominação, agora com crachá, planilha e discurso de compliance.
Sem julgamentos, apenas constatando, porque, afinal, onde há poder também há interesse, é impossível naturalizar que o STF se torne o destino final de servidores de elite, togados em razão da carreira, moldados no ethos da máquina pública da capital: assim é feito, porque assim se faz.
Não se trata de fé cega ou convicção no mito da neutralidade, mas já faz algum tempo que a sociedade brasileira não vê chegar ao Supremo um jurista de verdade, alguém com obra publicada, pensamento próprio e reputação construída fora dos corredores de Brasília.
O Supremo de 2025 é um Tribunal Totipotente, como uma célula biológica capaz de se transformar em qualquer coisa: legisla, administra, arbitra e ainda julga suas próprias decisões. É o Barão de Munchausen institucional: consegue se desatolar puxando a si mesmo pelos cabelos. Mas há algo ainda mais grave: ao colonizar o STF com servidores da máquina federal, mata-se o pluralismo político.
Como ensina Chantal Mouffe, o pluralismo agonístico é um modelo político que reconhece a existência de conflitos irreconciliáveis na sociedade, mas defende que estes devem ser transformados em uma disputa entre adversários políticos, e não entre inimigos. Um não pode pretender eliminar ou negar a existência do outro. Com efeito, o maior risco à democracia é a eliminação do conflito.
Sem antagonismo, o confronto entre projetos diferentes, a política morre e nasce a pós-política, governada por especialistas que fingem neutralidade. Enfim, o STF servidor, longe de representar o povo, representa o próprio Estado, e o Estado, como se sabe, não tem eleitor, eliminando assim o pluralismo agonístico em prol de interesses corporativos.
Vivemos um apagão de ideias. A esquerda, burocratizada e sem fôlego, esqueceu o povo. A direita, tomada pelo moralismo de redes, confunde política com patrulha. Ambas fingem antagonismo, mas servem ao mesmo senhor: o consenso tecnocrático.
E, como lembrava Zygmunt Bauman, o poder já não mora na ágora pública (na praça). No mundo globalizado, o poder real, a capacidade de agir, separou-se da política, que é apenas a capacidade de decidir o que deveria ser feito.
O resultado é um Estado que promete muito e pode pouco: as grandes forças que moldam a vida, financeiras, tecnológicas e institucionais, não passam mais pelos espaços públicos, mas por não-espaços digitais, impenetráveis e insondáveis. Enquanto isso, a política nacional se resume à administração da impotência.
O povo, sem saber onde o poder realmente está, dirige sua revolta de forma difusa, e, por puro desespero, se agarra aos populistas, aos velhos caudilhos de esquerda ou de direita, que prometem devolver voz ao que já não tem lugar. É nesse palco líquido, em que tudo escorre por entre os dedos dos representantes do “povo”, é que surge outra metáfora perfeita de Bauman para Brasília, os turistas e os vagabundos!
O vagabundo é o refugiado, o náufrago que se movimenta não porque assim deseja, mas porque o chão desaparece debaixo dos seus pés. O turista, pelo contrário, se movimenta por prazer, pelo deleite, tranquilo porque seguro, leva o seu mundo consigo, com a certeza de voltar para casa sem nenhuma perda ou sacrifício.
O vagabundo é o político brasileiro típico da era da insegurança institucional: vive sob leis eleitorais mutantes, reguladas por uma Justiça Eleitoral voluntariosa, que ora pune, ora absolve conforme o vento político. Sem chão firme, arrisca-se em emendas como a do Pix Orçamentário, buscando sobreviver politicamente, o que explica, mas não justifica.
Os políticos sabem que são descartáveis: o sistema os usa, esvazia e abandona na sarjeta do noticiário. Quando caem, e caem com frequência, viram réus, presos, ex-presidentes, fantasmas de si mesmos. São os vagabundos do poder: nômades da urna, culpados de tudo e senhores de nada.
O turista da política é o servidor público de elite da tecnoburocracia, o verdadeiro habitante da Brasília líquida. Ganha bem, é estável, não perde nunca. Tem tempo para tramar, articular e redigir pareceres que moldam o destino do país, sem jamais submeter-se ao voto.
Sua mobilidade é de luxo: circula entre gabinetes, conselhos e tribunais com a desenvoltura de quem sempre tem passagem de volta garantida. A política, para ele, é turismo institucional: visitar o poder sem correr o risco de perdê-lo. Advogado da AGU, se agraciar bem o Planalto, pode até chegar ao topo, sem jamais ter recebido um voto popular.
O ápice desse roteiro para o turista é o Supremo Tribunal Federal, o resort definitivo da tecnoburocracia. Ali se encena, com perfeição, a metáfora de Bauman – de um lado, os políticos-vagabundos, errantes e descartáveis, à mercê das marés eleitorais; de outro, os tecnoburocratas-turistas, instalados em suas carreiras permanentes, acumulando milhas no programa da estabilidade.
Uns servem ao voto e pagam o preço da volatilidade; outros servem ao Estado e colhem os dividendos da eternidade funcional. Juntos, compõem o teatro líquido descrito por Bauman, uma política sem poder e um poder sem política. O enredo muda, os atores transitam, mas o elenco permanente permanece o mesmo, o da tecnoburocracia em férias permanentes no topo do sistema.
Vale lembrar que o presidente e o vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) são ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto o corregedor-geral da Justiça Eleitoral é um ministro do Superior Tribunal de Justiça. O TSE é um tribunal que não tem quadro jurisdicional permanente, substituído a cada dois anos, composto por três ministros do STF, dois ministros do STJ e dois advogados indicados pelo Presidente da República a partir de lista tríplice definhada pelo STF. Resultado: o STF permanece no comando.
Tendo em vista que a legislação eleitoral é intrincada e mutante, sujeita a avaliações subjetivas a cada dois anos, é natural que muitos eleitos, senadores ou deputados, enfrentem processos com objetivo de cassar seus mandatos. Não é incomum que o mandato futuro já nasça comprometido no processo.
Essa instabilidade determina a atuação do parlamentar, que passa grande parte do tempo com advogados tentando antecipar como o TSE ou o STF decidirão. O compromisso se desloca da base eleitoral para a tecnoburocracia: a sobrevivência no mandato depende disso.
Resta assim prejudicada a altivez política e a isenção de ânimo quando confrontado com interesses do Poder Judiciário. O excesso de legislação eleitoral prejudica a inviolabilidade dos mandatos, a imunidade e as prerrogativas do futuro parlamentar, tornando-o vagabundo já na chegada a Brasília.
O presidente Lula recentemente afirmou que este é o pior Congresso que já viu. Verdadeira a afirmação. O sistema político brasileiro tornou-se um laboratório da tecnoburocracia, o mais perverso dos regimes: aquele em que o poder migra das urnas para o establishment funcional do Estado.
O ex-governador Paulo Hartung apontou um sintoma revelador: o Parlamento está infestado de “nepo babys”, herdeiros de oligarquias que tratam mandatos como patrimônio de família. Sua crítica expõe o grande paradoxo do sistema político: mesmo com o financiamento público de campanhas, nada mudou em termos de representatividade ou diversidade.
O modelo apenas se reinventa para perpetuar o mesmo poder. A chamada “emenda Pix”, além de imoral, reforça esse desequilíbrio no acesso ao poder ao consolidar privilégios de quem já ocupa cargos eletivos.
Quem está fora do sistema praticamente não tem chance. A disputa eleitoral tornou-se um jogo de cartas marcadas. Quantos professores, profissionais liberais ou cidadãos comuns conseguem se eleger? A política foi capturada pelas corporações que vivem dela, e se reproduzem dentro dela. O escândalo das emendas Pix escancarou a corrosão moral da instituição.
De fato, trata-se de um Congresso enfraquecido, que perdeu voz e legitimidade. Como relatou Vera Rosa, no Estadão (14/10/2025): “O problema é que o nó da prestação de contas de 2020 a 2024 ainda não foi desatado. São 40 mil emendas despachadas por parlamentares a seus redutos eleitorais, de forma direta ou por meio de colegas, que precisam ser vasculhadas com lupa. Há poucos dias, ouvi de um ministro do STF que parte significativa delas é ‘religiosa’. ‘Mas por quê?’, perguntei. A resposta veio rápida: porque o parlamentar fica com um terço. E as obras mesmo só existem no papel.”
A chamada “emenda religiosa” resultou em uma bancada congressual refém de investigações conduzidas pelo Judiciário, pelo TCU e pela Polícia Federal. Assim, é fácil compreender por que a chamada PEC da Blindagem, barrada no Senado, nasceu do medo das investigações criminais.
Um Congresso acuado e sob suspeita de envolvimento em irregularidades nas emendas parlamentares dificilmente tem autoridade moral ou política para sabatinar candidatos ao Supremo Tribunal Federal.
No desenho institucional brasileiro, caberia ao Senado exercer o contrapeso constitucional do STF, aprovando as indicações de ministros em sabatina e fiscalizando politicamente a Corte, inclusive julgando eventuais crimes de responsabilidade. Contudo, essa parte do mecanismo de freios e contrapesos é, na prática, apenas teórica: atua mais como freio moral do que como força de contenção efetiva. A sabatina virou mera formalidade cartorial.
Assim, enquanto o STF continuar sendo o coro afinado da tecnoburocracia, e o Senado, o cartório do poder, o Brasil seguirá sendo um país governado por carreiras, não por cidadãos.
Ninguém é contra a participação de servidores públicos na política, mas é preciso um freio institucional. Uma quarentena de quatro anos para delegados, juízes, promotores e militares, por exemplo, seria uma vacina contra o uso do cargo como trampolim eleitoral e contra a colonização dos espaços políticos pelos tecnoburocratas.
Hoje, a passagem do serviço público para o palanque é direta, o crachá virou bandeira. E quem deveria fiscalizar o poder passou a disputá-lo, torcendo e retorcendo a lei em benefício próprio.
O documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, ilustra bem a promiscuidade entre o poder político e o econômico. Em uma das cenas mais simbólicas, um empresário visita o Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, e encontra um político. O político, o “vagabundo” do poder, pergunta, surpreso: “Você por aqui?”. O empresário, o “turista” da elite, responde com ironia calma: “Eu sempre estou aqui; a sua presença é que é novidade.”
A anedota resume o contraste entre os dois personagens que habitam o Estado brasileiro: o político errante, transitório, dependente das urnas; e o empresário permanente, parte estrutural da engrenagem. Cabe um parêntese: o atual ocupante do Palácio dos Bandeirantes é um turista bem-sucedido na política, um alienígena em São Paulo, daí a dificuldade em se projetar nacionalmente para enfrentar Lula, um político profissional, experiente em articulação e sobrevivência. Não consegue atrair o centro, que o considera radical demais, nem a extrema-direita, que o vê como radical de menos.
Logo após essa passagem, Petra Costa insere uma sequência poderosa: duas placas comemorativas das reformas do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República. A diretora sabe do que fala, em ambas as placas aparece o nome da empresa de engenharia cujo avô materno foi um dos sócios fundadores.
A primeira placa data do governo Fernando Collor de Mello (1990–1992); a segunda, do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2006). O detalhe que une ambas é revelador: as mesmas construtoras aparecem creditadas nas duas reformas, com a adição, no período Lula, de novos atores empresariais que, anos depois, se tornariam protagonistas da Operação Lava Jato.
A coincidência exposta pelas placas, diferentes presidentes, mesmos patrocinadores, transforma o mármore institucional em metáfora da continuidade real do poder. O que muda é o ocupante do Palácio; o que permanece é o circuito empresarial que o sustenta.
Mais do que um detalhe histórico, a cena reforça a tese central do documentário: no Brasil, o poder raramente muda de mãos, apenas troca de crachá. O empresariado, permanente e silencioso, é o turista que nunca sai de cena; a política, cíclica e dependente, é o vagabundo que apenas passa por visita.
Infelizmente, a Constituição de 1988 não previu a reeleição nem ciclos de poder tão longos. Rever a forma de escolha dos ministros do STF, portanto, não seria um absurdo, poderia reduzir a concentração e ampliar o pluralismo.
Caberia aos políticos, os “vagabundos”, promover tal mudança. Mas aí surge a pergunta incômoda: até que ponto o espaço do poder político já foi capturado pelos tecnocratas da burocracia estatal, os “turistas”? E até que ponto estão todos enredados em falcatruas, como as emendas religiosas e as fragilidades do processo eleitoral, que já inviabilizam qualquer reforma real?
No fim, parece claro: o Brasil já é uma tecnocracia, o Estado deixou de ser instrumento do cidadão para se tornar projeto de poder em tempo integral. A máquina serve a si mesma, gira sobre o próprio eixo e chama isso de eficiência. Enquanto o povo financia o sistema, o sistema remunera seus próprios operadores, com crachá, planilha e verniz técnico.
Mas essa ainda não é a última página da história, apenas o capítulo em que o país precisa decidir se continuará sendo governado por carreiras ou, enfim, por cidadãos.
Diogo Egidio Sachs é advogado.
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