Cuiabá, Quinta-Feira, 17 de Julho de 2025
RAINARA LINO
17.07.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

O Alienista e a banalização do diagnóstico

Diagnóstico é um assunto delicado, que não deve ser tratado com banalidade

Recentemente, terminei o livro O Alienista, de Machado de Assis, e o comparo com aspectos da vida contemporânea. Enxergo a obra como uma sátira dos dias atuais: um médico ilustre e extremamente respeitado decide dedicar-se ao estudo da razão, em contraponto à insanidade. Ele passa, de forma desenfreada, a mandar trancafiar todos aqueles que considera distantes da razão. O conceito do que é razão e do que é insanidade é definido exclusivamente por ele.

 

Diagnóstico é um assunto delicado, que não deve ser tratado com banalidade

O que chama atenção é que os indivíduos encerrados na Casa Verde — nome dado ao seu hospício — não demonstravam nada além de suas próprias subjetividades, maneiras singulares de estar no mundo, traços de seus contextos de vida. Mas, para Simão Bacamarte, tudo isso era sinal de insanidade.

 

Penso na atualidade, em que diagnósticos são distribuídos de forma exagerada e tratados com banalidade, sem levar em consideração que aquilo que se denomina como ansiedade, TDAH, entre outros, nem sempre representa essas condições de fato, mas pode refletir outras questões — como o contexto atual de vida. Como você tem vivido sua vida? Quais as consequências de suas escolhas? E sua situação psicossocial ou socioeconômica? Tudo isso também deve ser considerado ao se discutir um diagnóstico. Nem tudo se resume ao DSM ou à CID.

 

Não afirmo que não existam, de fato, pessoas com essas afecções, mas defendo que, antes de tudo, se escute a subjetividade do sujeito que apresenta tais queixas. Diagnóstico é um assunto delicado, que não deve ser tratado com banalidade — como fazia O Alienista, que não escutava, mas logo exercia seu poder sobre o chamado “doido”. Bacamarte exercia esse poder invulnerável em nome de um saber que ninguém ousava questionar.

 

Esse poder se apresentava como inquestionável por meio de um discurso que também é atual: o discurso da ciência, que não deve ser contestado, por possuir embasamento. “O líder da massa possui uma autoridade ilimitada; ele é protegido contra toda crítica e permanece sempre certo.” (Freud, 1921). O Alienista, sempre recorrendo à frase “em nome da ciência”, impunha sua autoridade sobre os moradores da pequena cidade de Itaguaí, sustentando sua posição como figura intocável — algo que Freud identifica como fruto da idealização do líder pelas massas.

 

O que se observa ali é o apagamento da singularidade sob a autoridade de um discurso totalizante. “A diferença individual desaparece e todos se igualam no laço comum com o líder.” (Freud, 1921). Aqueles indivíduos, antes singulares em seus modos de viver, passam a ser classificados, rotulados e isolados com base em critérios unilaterais. O diagnóstico, nesse contexto, torna-se instrumento de controle — e não de cuidado.

 

Nenhum discurso deve prevalecer como absoluto ou portador da verdade. Caso contrário, transforma-se em doutrina. É necessário que haja espaço para o diálogo e para a crítica; o discurso deve ser negociável e passível de questionamento.

 

Freud nos alerta: “A massa não quer saber a verdade. Ela prefere as ilusões que fortalecem seu vínculo com o líder.” (Freud, 1921). E é justamente nessas ilusões — da ciência como verdade incontestável, do médico como salvador, e do diagnóstico como sentença definitiva — que se sustenta o poder de Bacamarte e, muitas vezes, a forma como ainda encaramos a saúde mental nos dias de hoje.

 

Rainara Lino é psicóloga.

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

Entre no grupo do MidiaNews no WhatsApp e receba notícias em tempo real (CLIQUE AQUI).




Clique aqui e faça seu comentário


COMENTÁRIOS
0 Comentário(s).

COMENTE
Nome:
E-Mail:
Dados opcionais:
Comentário:
Marque "Não sou um robô:"
ATENÇÃO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. Comentários ofensivos, que violem a lei ou o direito de terceiros, serão vetados pelo moderador.

FECHAR

Preencha o formulário e seja o primeiro a comentar esta notícia



Leia mais notícias sobre Opinião:
Julho de 2025
17.07.25 05h30 » O jogo do perde-perde
17.07.25 05h30 » Pantanal e grandes incêndios
16.07.25 05h30 » Trump x Lula
16.07.25 05h30 » Sua pressão pode ser curável
15.07.25 05h30 » A metade de 100
15.07.25 05h30 » Em paz