Cuiabá, Domingo, 14 de Setembro de 2025
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA; VÍDEOS
14.09.2025 | 11h45 Tamanho do texto A- A+

"O potencial feminicida é controlador e ciumento", alerta delegada

A delegada Judá Marcondes revelou que a violência psicológica tem sido o principal crime registrado em Cuiabá

Victor Ostetti/MidiaNews

A delegada Judá Maali Marcondes, titular da Delegacia Especailizada de Defesa da Mulher

A delegada Judá Maali Marcondes, titular da Delegacia Especailizada de Defesa da Mulher

ANGÉLICA CALLEJAS
DA REDAÇÃO

A delegada Judá Marcondes, titular da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Cuiabá, afirmou que potenciais feminicidas costumam apresentar comportamentos de controle e ciúmes excessivos muitas vezes vistos de forma equivocada como amor ou proteção. Essas condutas fazem parte da violência psicológica, que tem sido o principal crime registrado na delegacia da Capital.

 

O potencial feminicida é aquele que é controlador e ciumento, e nós naturalizamos o controle como proteção e o ciúmes excessivo como amor

"Muitas mulheres adoeceram devido ao relacionamento abusivo e, somente em 2021, conseguimos ter esse crime capitulado no Código Penal. O controle e os ciúmes são condutas que geram feminicídios. O potencial feminicida é aquele que é controlador e ciumento, e nós naturalizamos o controle como proteção e o ciúmes excessivo como amor", disse Judá em entrevista ao MidiaNews

 

Ainda de acordo com ela, violência psicológica faz com que os homens abusadores consigam anular a mulher e fazer com que ela aceite tudo que ocorre na relação abusiva. Entre as violências ocorridas nas relações abusivas, a delegada citou o controle, manipulação, racismo, diminuição da autoestima, exposição da intimidade e até estupros maritais.

 

"Eu já atendi caso de mulher que sofreu uma tentativa de feminicídio, e quando nós prendemos [o acusado], essa mulher falou que a culpa era dela, que não era para a gente prender, que ela era responsável pela sua tentativa de feminicídio".

 

As condutas de controle e ciúmes excessivos aparecem no Formulário Nacional de Avaliação de Risco, que avalia as chances de a mulher ser vítima de um feminícidio, e é aplicado às mulheres que solicitam medidas protetivas. Conforme Judá, esse documento é analisado minuciosamente por ela e sua equipe, uma vez que pode prevenir que uma mulher seja morta pelo companheiro.

 

A delegada ainda falou sobre a importância da rede de enfrentamento aplicada em Cuiabá, que é considerada um modelo para todo o estado, e da necessidade de políticas públicas que atendam não só as vítimas e os agressores, mas também foque na mudança cultural e atinja as crianças e adolescentes para que a próxima geração quebre esse ciclo de violência. 

 

 

Confira os principais trechos da entrevista:

 

MidiaNews – O 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que foi divulgado este ano, revelou que Mato Grosso lidera, pelo segundo ano consecutivo, o ranking de feminicídio no país. Vemos com frequência crimes de feminicídio acontecendo no interior do estado, mas como está esse cenário aqui em Cuiabá?

 

Judá Marcondes – Em Cuiabá, os números são os mesmos do ano passado. As cidades no interior, como Sinop, Cáceres, Sorriso, por exemplo, que têm 89 mil habitantes. Se for comparar com o número de habitantes que nós temos aqui em Cuiabá, em torno de 500 mil, nós observamos que a taxa de feminicídio aqui é mais baixa do que nesses lugares. Mas a gente se importa com o estado inteiro, embora eu atue aqui em Cuiabá. Nós sabemos que Cuiabá é um espelho, é uma referência, e as nossas boas práticas devem ser aplicadas no interior. Nós nos importamos e procuramos saber se a rede de enfrentamento daquele lugar atua corretamente.

 

As mulheres da capital têm mais acesso ao conhecimento, conseguem reagir, tendo mecanismos de fuga, seja conseguindo um emprego, seja conseguindo ter acesso à rede de enfrentamento

MidiaNews – A senhora disse que o índice de feminicídio aqui em Cuiabá é proporcionalmente menor comparado às outras cidades do estado. A que a senhora atribui isso?

 

Judá Marcondes – Aqui em Cuiabá, a rede de enfrentamento é muito forte, composta pela Polícia Civil, Militar, Ministério Público, Judiciário e Defensoria. Nós temos também a prefeitura atuando fortemente, fornecendo casas de amparo e apoio psicológico às mulheres. Temos o programa do Estado, Ser Família Mulher. As mulheres da capital têm mais acesso ao conhecimento, conseguem reagir, tendo mecanismos de fuga, seja conseguindo um emprego, seja conseguindo ter acesso à rede de enfrentamento. E este modelo em Cuiabá deve ser expandido para todo o estado.

 

Nós sabemos que existem cidades que não têm uma rede de enfrentamento tão forte. E o ideal seria que o que ocorre em Cuiabá ocorra em todo o estado. Daí a importância de se ter as prefeituras dando seu apoio às mulheres vítimas de violência, seja fornecendo hotéis para acolhimento das mulheres, mas também políticas públicas, ampliando creches, abrindo portas de empregos para essas mulheres vítimas de violência. As políticas públicas são fundamentais para encorajar a mulher a sair do ciclo de violência. A gente sabe que a dependência financeira é um fator de risco, é um fator que condiciona a mulher a ficar no ciclo de violência, mas também existe a dependência emocional. Daí a importância de palestras, da atuação da rede de enfrentamento, mostrando para a mulher o seu verdadeiro papel na sociedade.

 

MidiaNews – De que forma se manifesta a violência psicológica?

 

Judá Marcondes – A violência psicológica é aquele caso de manipulação em que o homem pratica o gaslighting. Ele culpa a mulher por tudo. Ele xinga e diz que a culpa é dela. Ele bate e diz que a culpa é dela. Ele faz alguma coisa errada, até mesmo trai, e diz que a culpa é dela, porque ela engordou, porque ela envelheceu, e a mulher se sente culpada mesmo. Eu já atendi caso de mulher que sofreu uma tentativa de feminicídio, e quando nós prendemos [o acusado], essa mulher falou que a culpa era dela, que não era para a gente prender, que ela era responsável pela sua tentativa de feminicídio. A gente encaminhou essa mulher para um atendimento psicológico, porque só com terapia continuada é que essa mulher rompe o ciclo de violência.

 

A manipulação é perigosa. O crime de violência psicológica é sutil, sorrateiro, e é tão naturalizado que a pessoa não percebe a violência desse crime. Tem muitos casos de feminicídio em que o crime antecedente não foi a lesão corporal. O homem nunca bateu na mulher, mas ele praticava violência psicológica, eliminava essa mulher a ponto de ela se sentir muito inferior e inclusive dar razão a tudo que ele dizia. Porque ele lê essa mulher e vai minando a sua autoestima. E a sociedade é responsável por isso. A gente fala do corpo da mulher, da questão de ser mãe, e este homem abusivo utiliza exatamente isso para atingir o emocional dessa mulher, dentro do relacionamento e depois.

 

Um homem abusivo que pratica essas violências utiliza exatamente isso: 'ah, eu pensei que você fosse uma mulher ideal, não sabia que você tinha ficado com tantos homens assim’. Começa a falar mal da família, fala mal da amiga, isola essa mulher. Nossa sociedade normaliza o homem controlar essa mulher através de violência psicológica, manipulação, através de ciúmes, que a gente naturaliza como amor, quando na verdade é um crime. Ciúmes excessivos é crime. Essa mulher vive essa relação acreditando que isso é certo e o homem também, praticando condutas de manipulação. Ele bate nessa mulher e diz que a culpa é dela. Existe relação de poder sobre o outro. E, na verdade, a relação saudável é onde há reciprocidade e respeito.

 

Infelizmente, nós condicionamos os homens a pensar assim, a agir dessa forma. Então, ele monitora o celular da mulher para garantir que a sua honra não vai ser abalada, e quando essa mulher decide diferente do que o homem deseja, ele pratica violências ou mata. Ou ele bate, ou ele faz um jogo de manipulação dizendo que ela está errada, que não é a mulher ideal que ele pensou que ela fosse. Ela se sujeita às relações [sexuais] para poder continuar sendo escolhida por esse homem, se sujeita à relação abusiva para ficar naquele relacionamento, e esse homem pratica as violências e até mesmo a morte. Todos os casos de feminicídios, quando a gente analisa, revelam que é a não aceitação da independência, da vontade e de uma decisão da mulher.

 

 

 

MidiaNews – Pelo que a senhora está dizendo, a população tem dificuldade de entender a violência psicológica. Como a delegacia atua nesses casos?

 

Judá Marcondes – A gente encaminha essas mulheres para o Hospital Municipal fornecido pela prefeitura. O Hospital Municipal faz um acompanhamento psicológico das nossas mulheres, um acompanhamento contínuo. Elas marcam um horário e têm acompanhamento psicológico, psiquiátrico, e eles também oferecem um atendimento jurídico. Quando a mulher entra na delegacia, eu sempre falo para elas: ‘olha, de todos os conselhos que eu te dou, esse aqui eu peço para você seguir, para ir nesse atendimento psicológico’. E, quando elas voltam, levando uma amiga ou para saber como está o procedimento, passados alguns meses, elas voltam diferentes. A fala é diferente, se sentindo realmente mulher independente, fortalecida.

 

O potencial feminicida é aquele que é controlador e ciumento, e nós naturalizamos o controle como proteção e o ciúmes excessivo como amor

Eu oriento minha equipe a observar as condutas de violência psicológica, porque é um crime novo. Muitas mulheres adoeceram devido ao relacionamento abusivo e somente em 2021 conseguimos ter esse crime capitulado no Código Penal. O controle e os ciúmes são condutas que geram feminicídios, são condutas dos feminicidas. O potencial feminicida é aquele que é controlador e ciumento, e nós naturalizamos o controle como proteção e o ciúmes excessivo como amor. Temos o formulário nacional de risco de ocorrência de feminicídio, que toda mulher que solicita medidas protetivas deve preencher, e há duas questões: uma falando sobre frases e condutas de um homem que pratica o controle e o ciúmes, e outra se ela sofre controle.

 

Quando a mulher diz que está sendo controlada e há ciúmes excessivo, já são dois pontos de risco de ocorrer um feminicídio. Nós analisamos outras situações, mas toda vez que vejo um homem descumprindo uma medida protetiva, considero que ocorreu um crime grave contra essa mulher. Analiso o formulário de risco para pedir ao juiz a prisão deste homem, porque essas condutas demonstram que ele é um potencial feminicida.

 

A violência psicológica não está presente só na conduta de controle, mas também em diminuição da autoestima e manipulação. Ele chega dando flores, a mulher acredita naquele romance, fala sobre sua vida e, no segundo momento, ele joga isso na cara dela. Ou então, no final do relacionamento, ele liga para pessoas ou vai ao local de trabalho da mulher e revela todos os seus segredos. Eu oriento a equipe a detectar sinais de violência psicológica, porque muitas condutas são romantizadas ou minimizadas. O combate não é apenas atendimento e encaminhamento, mas entender a complexidade desse crime e pontuar essas ações para que a mulher, ao ler seu depoimento, compreenda o relacionamento abusivo que vem sofrendo.

 

Outro ponto que oriento minha equipe é identificar racismo. Aquele homem que critica a religião ou características físicas da mulher, pontuando raça ou etnia. Dentro da violência psicológica, temos também estupros maritais. Às vezes, ela toma remédio para dormir e ele aproveita para praticar relações sexuais abusivas. Muitas vezes, a mulher diz não, e ele bate no cachorro, bate no filho, quebra objetos para que ela ceda. Já atendi, não uma, nem duas vezes, mulheres que tinham acabado de ter bebê, e o homem praticou sexo forçado, causando abertura de pontos da cirurgia. Mulheres passando por câncer ou cirurgias no útero também sofreram estupros.

 

MidiaNews – Isso é comum, os homens acharem que as mulheres têm obrigação de manter relações sexuais por estarem juntos?

 

Judá Marcondes – A gente precisou de uma lei, o protocolo 'Não é Não'. Existe muito dentro das relações amorosas, o desrespeito ao “não” da mulher. Para o crime, é importante consignar ameaça e violência física, ou estupro vulnerável, quando a mulher está dormindo ou embriagada. Mas quando a mulher acaba cedendo sem ameaça ou violência, é microviolência, objetificação. Para ser crime, precisa haver ameaça, grave ameaça, violência, ou que a mulher esteja inconsciente ou impossibilitada de se defender.

 

 

 

MidiaNews – Nos atendimentos, as mulheres costumam relatar sofrer apenas um tipo de violência ou vários tipos ao mesmo tempo?

 

Judá Marcondes – Quando vemos o feminicídio, é a ponta do iceberg. As mulheres sofrem múltiplas violências porque decidiram terminar o relacionamento: física, moral, psicológica, patrimonial, sexual. Tivemos um caso de violência vicária, perpetrada contra os filhos para atingir a mulher, em que o homem matou e jogou a enteada no poço. Ele também pode falar mal da mulher para os filhos ou brigar em processos, tentando manipular emocionalmente.

 

Em 2023, tivemos um caso de mulher que decidiu fazer uma festa para o filho com rescisão contratual e o homem matou-a porque não aceitou a decisão

Existem várias mulheres sofrendo violências de todos os tipos, por não aceitarem suas decisões. Seja decisão religiosa, patrimonial ou psicológica, o agressor quer continuar controlando a mulher. Quando um homem pratica violência, é uma forma de negar que a mulher é um ser humano com direitos garantidos. Todos têm direito à liberdade, dignidade, ir e vir e à propriedade, frequentemente negados pelos homens. O que mais provoca violência é o direito da mulher dizer não.

 

Quando a mulher diz não, ou manifesta liberdade que destoa do que o homem pensa, ela sofre violência. Todos os dias atendo mulheres que relatam: ‘terminei o relacionamento e ele não aceita’. ‘Eu disse não a uma relação sexual e ele me estuprou’. ‘Quis trabalhar e ele me manipulou com violência psicológica’. ‘Ele me traía e me manipulou sobre bens e dívidas’. Todas relatam violências decorrentes de decisões que não foram aceitas.

 

Em 2023, tivemos um caso de mulher que decidiu fazer uma festa para o filho com rescisão contratual e o homem matou-a porque não aceitou a decisão. Quantas mulheres morrem “em vida” por decisões que o homem não deseja? Patrimonial, liberdade, sexualidade, religião, rompimento. É como se fossem objetos: objeto não decide, não fala, não anda, serve apenas ao ser humano. Quando toma decisão diferente, há violência. É sobre isso que devemos falar e ensinar aos meninos nas escolas, para que cresçam sem objetificar a mulher.

 

Muitos homens manipulam mulheres para impedir que elas “voem”, para manter domínio. Isso demonstra fraqueza. Para se relacionar, não é necessário dominar o outro. A honra de um homem não está no corpo da mulher, mas na própria conduta. Isso precisa ser falado nas escolas. Um homem que controla ou agride uma mulher não tem bom caráter.

 

MidiaNews – O anuário mostrou aumento de crimes como ameaça, lesão corporal e perseguição (stalking). A senhora falou sobre políticas públicas e educação, mas como as mulheres podem sair desse ciclo de violência?

 

Judá Marcondes – Precisamos de mudança de pensamento, conscientização e mostrar às mulheres o papel do Estado. A medida protetiva ajuda, mas também é importante que as mulheres percebam que não precisam estar em relação abusiva para serem aceitas socialmente. Fomos moldadas para cumprir um papel moral, para sermos escolhidas por um homem. Por isso muitas mulheres trabalham, cuidam da família e se anulam. Quando sofrem violência, se calam. Precisamos desconstruir esse pensamento.

 

Um homem que xinga, estupra mulher dormindo com remédio ou embriagada, que controla ou humilha, precisa ser enfrentado. O maior combate é estimular as mulheres a amarem várias coisas: trabalho, família, filhos, amigas, hobbies. Esse equilíbrio emocional fortalece e ajuda a sair de relacionamentos abusivos. É essencial ter paz e confiar no sistema de proteção.

 

MidiaNews – Como as medidas protetivas abrangem esses diferentes tipos de violência? Recentemente, uma mulher que tinha essa proteção foi morta a tiros em Sorriso pelo ex-companheiro. Acredita que é necessário uma medida mais dura contra esses agressores?

 

Judá Marcondes – Nós oferecemos medida protetiva com botão do pânico, e hoje temos a tornozeleira eletrônica. Nos casos graves, como ameaça ou perseguição, quando a mulher pede a medida protetiva, nós solicitamos a tornozeleira eletrônica. Ele é intimado para colocá-la, e ela recebe um dispositivo. Se ela estiver em um local determinado, como casa ou faculdade, e ele passar pelo raio estabelecido pelo juiz, a Polícia Militar é acionada e faz a prisão. Antes de vir pra cá, eu estava lendo um procedimento de um homem que estava no INSS e se aproximou da mulher. Ela não o viu e ele também não a viu, mas o dispositivo foi acionado. A Polícia prendeu o homem, que precisou se justificar e comprovar para não ser preso.

 

É um dispositivo que realmente traz proteção às mulheres e está disponível em todo o estado para os casos graves, em que a mulher corre risco. Também existe o aplicativo SOS Mulher, que oferece o botão do pânico. A mulher pode acioná-lo se houver descumprimento de medidas. Esse aplicativo permite solicitar medidas protetivas online, acompanhar o pedido e fazer denúncias anônimas, por exemplo, de um vizinho que comete violência. É um aplicativo completo, que todos nós que lutamos contra a violência devemos ter no celular, com telefones de denúncia e possibilidade de registrar denúncias diretamente por ali.

 

Quando a mulher solicita medidas protetivas, analisamos várias situações. Por exemplo, se ela tem um bem comum do casal que não quer que seja vendido. Se ele possui arma, pedimos a suspensão de seu uso. Pela medida, ele é proibido de falar com ela e se aproximar dela, de familiares e amigos. Se ela frequenta determinados lugares, como igreja, academia ou a casa da mãe ou irmã, todos podem ser incluídos na medida, e ele é proibido de estar nesses locais. Nosso objetivo é garantir a liberdade e a proteção da mulher. Muitos homens podem dizer “mas eu vou ficar restrito, tenho medo até de sair”. Pois bem, então não pratique violência contra a mulher.

 

 

MidiaNews – Muitos homens questionam como a mulher consegue a medida. Há respaldo para que esse homem seja tornozelado ou alvo de medida protetiva?

 

Judá Marcondes – Com certeza. É importante também divulgar que, desde 2023, houve uma inovação jurídica: não precisa haver crime para a mulher solicitar medidas protetivas, nem inquérito policial ou boletim de ocorrência. Basta que ela sinta desconforto na situação para poder solicitar a medida. Por exemplo: a mulher está se separando, não houve crime até então, mas ele diz “não, eu não vou sair [de casa], saia você”.

 

Ela pode ter parado de trabalhar ou ter vários filhos que vivem com ela. Então, ela solicita a medida protetiva para prevenir conflitos. A medida protetiva é preventiva, visa evitar que crimes ocorram. Muitos homens que recebem a medida querem discutir sobre o crime; na questão criminal há procedimento específico. Mas a medida protetiva independe de investigação, e é importante informar isso.

 

É importante também divulgar que, desde 2023, houve uma inovação jurídica: não precisa haver crime para a mulher solicitar medidas protetivas, nem inquérito policial ou boletim de ocorrência

MidiaNews – A senhora comentou sobre algumas medidas preventivas. Também está sendo muito divulgado o sinal de ajuda que a mulher pode fazer no momento em que estiver em perigo. Poderia demonstrar como isso funciona?

 

Judá Marcondes – A mulher mostra a palma da mão, fecha o polegar e depois fecha a mão várias vezes, como um pisca-alerta. Um exemplo foi o caso de uma mulher do interior que, ao vir para Cuiabá com o marido uma vez por mês, pediu ajuda usando esse sinal. É importante divulgar todos os meios de pedir ajuda. Se a mulher tiver o aplicativo no celular, também é uma forma de denúncia ou solicitação de medida protetiva.

 

MidiaNews – Quais são os três casos mais recorrentes registrados na Delegacia da Mulher da capital?

 

Judá Marcondes – Ameaça, lesão corporal e violência psicológica são os mais recorrentes. Hoje, a violência psicológica é mais presente na nossa unidade da Delegacia da Mulher de Cuiabá. Há também a violência vicária, praticada contra os filhos. Muitas mulheres ficam reclusas, com síndrome do pânico, adoecidas por ameaças de morte de parceiros que inicialmente diziam amá-las. São homens que têm filhos com essas mulheres, passaram a ameaçá-las de morte. Esses crimes recorrentes deixam as mulheres reclusas e adoecidas.

 

MidiaNews – Há dados sobre subnotificação desses casos de violência sexual, tanto em geral quanto dentro dos relacionamentos?

 

Judá Marcondes – Temos projeções. Muitas mulheres sofrem estupro marital ou violência sexual, inclusive nas ruas, e não procuram a Polícia por vergonha. Quando procuram, têm medo de que o caso seja exposto na mídia. Assim, muitos casos não são registrados. Atendemos mulheres que relatam violência dentro do relacionamento, mas também casos passados, como abuso na infância ou em espaços públicos. Há muitos casos subnotificados, tanto de violência sexual quanto doméstica.

 

Digo que praticamente toda mulher no Brasil já sofreu violência de gênero, seja no trabalho ou na infância. Mesmo que não reconheçam, todas já passaram por alguma situação de violência. Nas palestras, falo para as meninas: “Quem tem certeza de que, desde a infância até a morte, não sofrerá violência?” Até vilipêndio de cadáver ocorre; meninas recém-nascidas também sofrem abuso físico e sexual. Mulheres, desde o nascimento, estão expostas a grandes riscos.

 

MidiaNews – A procura por atendimento para denunciar violência física é maior do que para outros casos?

 

Judá Marcondes – A lesão corporal é mais frequente nos flagrantes, envolvendo lesão ou ameaça. Por exemplo, quando o vizinho chama a Polícia ou a própria mulher procura atendimento. Mas acredito que a violência psicológica hoje já ultrapassa a lesão corporal.

 

MidiaNews - A senhora citou a violência patrimonial, quando o homem quer esconder os bens, por exemplo, quando percebe que vai ocorrer uma separação. Isso é comum aqui em Cuiabá?

 

Judá Marcondes - Muito. Em Cuiabá e em todo o Estado de Mato Grosso. É uma violência pouco comentada. Eu, enquanto delegada, é a que mais fico com as mãos atadas. Porque eu dou uma medida protetiva para essa mulher, ela volta para mim e fala: “Realmente, ele não fala mais comigo, eu me sinto protegida, mas não tenho onde cair morta. Estou com meus filhos passando fome, estou numa situação de vulnerabilidade absurda”. Nós temos o programa Ser Família Mulher, que é um auxílio-moradia para as mulheres em vulnerabilidade econômica, mas muitas têm direito aos bens.

 

Que muitas vezes ela pegou uma herança, um dinheiro que adquiriu ao longo da vida, e investiu numa empresa que é dos dois, comprou uma casa que é dos dois, um carro que é dos dois, uma moto, uma bicicleta, qualquer bem. Às vezes a mulher investe no terreno da sogra, investe numa empresa que ele domina. E eu falo de todas as classes sociais. Não falamos só das pessoas de classe alta, também da classe baixa. É uma luta judicial muito grande, e precisamos falar sobre isso. Precisamos de leis para proteger essas mulheres.

 

 

 

MidiaNews - A senhora considera a violência patrimonial a mais difícil de comprovar juridicamente? Há meios de a vítima se respaldar, juntando provas? Que tipo?

 

Judá Marcondes - A medida protetiva consegue, se a mulher tiver documentação desses bens, impedir a venda. E, se algo estiver no nome dela, conseguimos a busca e apreensão. Mas não é tão comum. Vem-se sensibilizando o Judiciário para que possa proteger as mulheres no âmbito da violência patrimonial, mas muitas sofrem por perder o direito à dignidade da pessoa humana, ao direito à propriedade, ao direito constitucional garantido. A Lei Maria da Penha trata da necessidade de proteção contra a violência patrimonial, mas ainda precisamos de uma lei específica. Enquanto isso, é necessário conscientizar as mulheres.

 

Muitos homens não aceitam dividir patrimônio que, pela lei, é conferido à mulher. Muitas vezes ela contribui financeiramente e não tem direito. Eles fazem de tudo para esconder esse patrimônio

Eu falo sempre: meninas, antes de casar, quem tiver condição, faça contrato sobre os bens e nunca, nunca, nunca deixe de trabalhar. Por nada. Quando a mulher trabalha, ela tem condição de se sustentar. Isso vale para todas as classes sociais. Ela consegue sustentar os filhos e protegê-los. A maior proteção que ela pode dar à família é trabalhar. Agora, para o homem, pagar 10% do salário é uma guerra. Se o juiz estabelece 20%, ele enlouquece. Se for 30%, ocorrem as maiores violências que se pode imaginar contra a mulher e a criança.

 

Muitos homens não aceitam dividir patrimônio que, pela lei, é conferido à mulher. Muitas vezes ela contribui financeiramente e não tem direito. Eles fazem de tudo para esconder esse patrimônio, e há carência legislativa nesse sentido. Crime no âmbito criminal ou providências para evitar desvios… é preciso ter a documentação em mãos. É importante orientar as mulheres a juntarem toda a documentação possível já durante o relacionamento. A pessoa com quem casamos é um ser humano que pode falhar. É preciso estar atento aos acordos feitos durante a relação amorosa.

 

MidiaNews - Vários delegados e juristas sinalizam a necessidade de endurecimento de penas para que agressores repensem antes de cometer o crime. É algo que a senhora defende também? Mudança na legislação ou no Código Penal?

 

Judá Marcondes - O aumento das penas é muito importante, porque traz sentimento de justiça às famílias e à sociedade. Mas é preciso entender que, sem mudança cultural e de pensamento, tanto de homens quanto de mulheres, não vamos conseguir combater realmente. A mudança no Código Penal ocorreu há pouco tempo, e precisamos aguardar seus efeitos pedagógicos. Mas é necessário, aliado a isso, promover a mudança cultural.

 

Já existem projetos do Tribunal de Justiça e do Ministério Público do Estado de Mato Grosso nas escolas. O Ministério Público também atua com um teatro que mostra os efeitos da violência psicológica, do controle, do ciúmes, do poder de um relacionamento abusivo dentro da família, repercutindo nos filhos, na mulher e até no homem. Esse projeto deve ajudar crianças e adolescentes a modificarem esse pensamento.

 

Mas temos os adultos, que são os que matam. Os adultos de 18 a 60 anos que cometem homicídios são homens. Precisamos mudar o pensamento deles. A Polícia Civil tem o projeto Papo de Homem para Homem, em Cuiabá e Várzea Grande, que foi expandido para o interior. Todo homem que recebe uma medida protetiva é encaminhado para o projeto pelo Judiciário. São três dias de reflexão sobre suas condutas. Essas palestras chamam os homens à responsabilização.

 

É fundamental mudar a ideia de que é preciso agredir ou controlar para se sentir homem ou honrado na sociedade. É totalmente o inverso. Uma mensagem que passo às mulheres: reflitam sobre seu real papel na sociedade. Somos protagonistas, e ao nosso lado, os homens também. Ninguém é melhor que ninguém. Não precisamos ficar submissas. Ao menor sinal de violência, procure a Polícia Civil, solicite medidas protetivas e proteja-se.

 

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