Diretor do IML (Instituto Médico Legal) de Cuiabá, o médico legista Eduardo Andraus Filho, de 41 anos, fala com empolgação sobre a especialidade que abraçou na Medicina. Segundo ele, o laudo da perícia é algo incontestável quando o trabalho é bem feito.
De acordo com o profissional, nada tem mais peso em um inquérito policial e consequentemente em um processo do que a prova técnica, que é produzida por profissionais da área de perícia.
“Se o laudo e o exame pericial são bem feitos, é indiscutível. Não se volta atrás como se volta atrás em uma confissão, como se pode errar na hora de dar um depoimento. Uma testemunha às vezes pode afirmar algo e ela simplesmente estar errada, porque ela tem vieses de memória, de visão, de esquecimento. Já a prova técnica não”, afirmou.
Mesmo em situações em que uma necropsia, por algum motivo, não consegue atingir todas as metas pretendidas, a perícia em si consegue excluir possibilidades e auxiliar significativamente a investigação policial.
“Ela não é uma perícia negativa, ela é uma perícia que simplesmente não conseguiu chegar a todas as metas pretendidas [...]. Às vezes você não consegue cravar alguma coisa, mas você consegue descartar muitas outras. E isso é de muita utilidade”, esclareceu.
Durante entrevista ao MidiaNews, Andraus ainda falou sobre a rotina da profissão, os desafios e a forma glamourizada que ela é abordada em seriados de TV. “A perícia criminal não é uma atividade emocionante ou divertida, mas muito séria e comprometida”.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews - O senhor pode dizer um pouco como é a rotina de um perito criminal?
Eduardo Andraus Filho - A rotina é a perícia de crimes, e os crimes geralmente são violentos. É ver as mazelas da sociedade a todo tempo. O desafio é manter a calma, manter a tranquilidade, serenidade e saúde mental durante anos a fio. Porque essa é uma profissão que você desenvolve ao longo de décadas. Precisa sempre estudar e desenvolver a capacidade de encontrar o que é importante e estabelecer o nexo entre esses achados e as ocorrências, alguma relação de causa e efeito perfeita.
MidiaNews - Houve algum caso que o marcou durante os anos de profissão?
Eduardo Andraus Filho - São muitos. Mas é o conjunto deles que marca bastante. É a sensação de que a violência é parte integrante, impregnada, da sociedade brasileira. Isso marca muito mais do que um caso isolado.
Costumo dizer que o médico legista e o técnico em necropsia, que é quem o acompanha o tempo todo, têm para si um aprendizado contínuo de como se portar, de como se manter vivo. Porque a gente vê como as pessoas morrem e as situações se repetem. A gente aprende muito com isso.
MidiaNews - O que pode dificultar a realização de um exame de necropsia?
Eduardo Andraus Filho - O que mais dificulta é a alteração das características originais da ocorrência do crime. E se eu posso citar uma é o tempo. É o tempo que passou desde a morte. Porque o ser humano, diferente de objetos inanimados, se modifica com o tempo, principalmente se ele morreu. O ambiente começa a provocar alterações no ser humano. E essas alterações vão dificultando muito a análise por parte do perito. A pele começa a se desintegrar, as vísceras se desintegram, a aparência externa se modifica muito. Também os grandes incêndios, os carbonizados, oferecem grande dificuldade porque a aparência se modifica por completo.
MidiaNews - É possível em todos os casos chegar à causa da morte de uma pessoa?
Eduardo Andraus Filho - As necropsias costumam, na grande maioria das vezes, chegar nas metas pretendidas. Mas algumas vezes não se consegue. Às vezes temos dificuldade em dizer de imediato, ao término da necropsia, qual foi a causa mortis. Aí a gente lança mão de exames adicionais, que são os exames feitos no laboratório forense e também pela histopatologia forense. Eles vão analisar tecidos e outros materiais oriundos do corpo humano. E com essas análises a gente pode aperfeiçoar o raciocínio que a gente fez até ali para daí conseguir chegar à causa mortis. Ainda assim há aquelas que, mesmo com o auxílio desses exames adicionais, persistem inconclusivas.
Mas a perícia em si consegue, ela não é uma perícia negativa, ela é uma perícia que simplesmente não conseguiu chegar a todas as metas pretendidas. Mesmo que parcialmente, ela consegue excluir muitas possibilidades, e a exclusão de possibilidades ajuda muito em uma investigação policial. Às vezes você não consegue cravar alguma coisa, mas você consegue descartar muitas outras. E isso é de muita utilidade.
MidiaNews - Se um assassino tenta “dissimular” a causa da morte da vítima, os exames são capazes de detectar isso? Existe alguma situação em que é possível driblar esses resultados?
Eduardo Andraus Filho - Sem dúvida. O homicida pode criar artefatos de confusão, mas o perito criminal e o médico legista são treinados para não se deixarem enganar por esses artefatos de confusão que o homicida pode tentar oferecer. Afinal, o homicida é um homicida eventual. Ele faz isso uma vez ou algumas vezes na vida dele. O perito criminal e o médico legista investigam isso todos os dias. É uma luta desequilibrada, porque ele tem pela frente gente que é expert no assunto. Ele vai ter que ser muito hábil para conseguir enganar.
MidiaNews - Alguma vez se deparou com um crime perfeito?
Eduardo Andraus Filho - Não, ainda não. Não há crime perfeito, só investigação insuficiente.
MidiaNews - Durante seus anos de experiência, alguma vez se deparou com um crime cometido por serial killer?
Eduardo Andraus Filho - Não, ainda não, ainda bem que não. Ou não fiquei sabendo ainda.
MidiaNews - Diante de um assassino assim, é difícil encontrar situações que unam os crimes?
Eduardo Andraus Filho - Você vai começar a encontrar padrões, mas isso vai ser muito mais visível para o policial, para o delegado do que para o legista. Porque são diferentes legistas, que vão fazer diferentes necropsias e quem vai reconhecer os padrões é quem centraliza as informações. Ou será uma perícia de balística que sempre vai encontrar projétil da mesma arma. Ou será o delegado que vai receber os laudos de necropsia que vão demonstrar ferimentos seguindo o mesmo padrão. Provavelmente não será o médico legista que vai reconhecer o modus operandi de um serial killer.
MidiaNews - Lidar diariamente com a morte é algo difícil. O senhor faz acompanhamento psicológico?
Eduardo Andraus Filho - Eu não precisei, mas o ideal, e isso ocorre, é que as instituições ofereçam acompanhamento psicológico e até protocolos de detecção precoce de pessoas que estão desenvolvendo alguma doença para que o auxílio seja o mais cedo possível. A Secretaria de Estado e Segurança Pública em Mato Grosso tem um setor que faz essa avaliação rotineira.
São pessoas que passam a conversar menos, que passam a se isolar, que passam a chorar sem motivo aparente, que mudam a sua eficiência no serviço, que eram pessoas mais produtivas e passam a ser improdutivas. São sinais de que a pessoa está ficando afetada.
Quanto mais próximo da rotina de violência, de homicídios e acidentes, mais frequente é a ocorrência de quadros de
depressão e de outras psicoses.
MidiaNews - O trabalho de perícia ganhou muita popularidade com as séries norte-americanas. O senhor assiste? Elas refletem o trabalho da perícia?
Eduardo Andraus Filho - Eu não assisto, mas sei que tratam a perícia criminal com glamour. Ocorre que, na prática, esse trabalho, especialmente na medicina legal, é uma arte parnasiana. É transformar elementos altamente técnicos e especializados da medicina em termos compreensíveis e exatos para o leigo, que são os aplicadores da justiça. A perícia criminal não é uma atividade emocionante ou divertida, mas muito séria e comprometida. É como o poema: "Longe do estéril turbilhão da rua,/Beneditino, escreve! No aconchego/ Do claustro, no silêncio e no sossego,/ Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!".
MidiaNews - A Politec foi fundamental para derrubar a versão da atiradora no caso Isabele porque mostrou que o tiro, ao contrário do que a defesa dizia, não foi acidental. Como foi aquele trabalho?
Eduardo Andraus Filho - Aquele conjunto de perícias, da medicina legal, da criminalística e do laboratório forense foi importante para trazer a verdade dos fatos. Porém é o que a Politec faz em todos os casos, rotineiramente, formando prova técnica para a apreciação da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Aquele caso só teve mais repercussão e visibilidade. Mas é a nossa rotina: produzir provas com excelência.
MidiaNews - Como o senhor descreveria a importância da perícia para uma investigação criminal?
Eduardo Andraus Filho - A perícia consegue materializar as ocorrências, dá precisão descritiva para aquele fato típico que está descrito nos códigos do mundo todo.
Cada população tem um código que indica as coisas que podem e não podem ser feitas. Elas estão codificadas geralmente em um Código Penal. Se determinada pessoa em uma população decide agir de forma contrária àquele código, infringindo as redações, ela vai cometer um crime.
Só que para ela ser perseguida penalmente, ser processada e, por ventura, condenada e punida, é preciso haver provas indiscutíveis de que essa pessoa realmente cometeu esse crime e de que uma outra pessoa, por ventura, tenha sido vítima. É aí que a perícia entra. A perícia materializa enfaticamente, materializa indubitavelmente a ocorrência de um fato típico criminoso e disponibiliza um laudo pericial para a autoridade.
A primeira autoridade que entra em contato com esse tipo de fato típico é a autoridade policial. Aí é a autoridade policial munida de um laudo pericial criminal. Aí ela tem uma prova técnica. Além disso, ela vai buscar nos testemunhos, vai buscar eventuais confissões, mas nenhuma tem tanto valor no processo como a prova técnica, a prova pericial. Porque ela é cabal.
Se o laudo e o exame pericial são bem feitos, é indiscutível. Não se volta atrás como se volta atrás em uma confissão, como se pode errar na hora de dar um depoimento. Uma testemunha às vezes pode afirmar algo e ela simplesmente estar errada, porque ela tem vieses de memória, de visão, de esquecimento. Já a prova técnica não.
MidiaNews - Em que casos específicos vocês atuam e como funciona?
Eduardo Andraus Filho - A perícia criminal tem algumas áreas: tem a criminalística, o laboratório forense, tem a identificação técnica e tem a medicina legal. A medicina legal é a área da perícia criminal que tem como objeto de perícia, objeto de interesse, o ser humano. Quando o ser humano é vítima de um crime, ele pode ser periciado para ver se há nele indícios dessa ocorrência ou indícios que possam determinar a autoria do crime.
Até o final do inquérito policial e a análise pelo Ministério Público, o acidente pode ter a possibilidade de uma responsabilização. Por mais que o único envolvido no acidente seja uma pessoa, ela vai ser periciada. Pode ser que ela tenha se acidentado por causa da ação ou omissão de um terceiro e esse terceiro pode ser responsabilizado. Para isso tem que haver perícia e não dá para, de antemão, no calor dos fatos, determinar se aquilo foi um acidente com ou sem a responsabilidade de alguém.
É por isso que todo indivíduo que se acidenta - seja no trânsito ou com uma arma de fogo - tem que ser periciado.
A criminalística analisa a cena do crime, o médico legista analisa a pessoa, seja crime de lesão corporal ou em crime de homicídio.
MidiaNews - O senhor pode explicar melhor o que é a tanatologia?
Eduardo Andraus Filho - A tanatologia é a ciência, o ramo do conhecimento que precisa ser dominado para se fazer uma necropsia. E toda necropsia é um desafio. A necropsia é você descrever tudo o que vê em um cadáver, com isso raciocinar e se determinar a causa mortis. Precisa ter a identificação inequívoca do cadáver, isso é parte integrante da necropsia. Você precisa recolher todos os indícios, todos os vestígios presentes que possam ajudar no raciocínio da autoridade policial posteriormente.
Tudo ali vai ser analisado com esses objetivos: estabelecer a causa mortis com a analise do cadáver, identificar a vítima inequivocamente e colher todos os vestígios presentes. Até mesmo pericial, por exemplo: sangue e secreções. Você vai fazer uma segunda perícia em cima disso.
Um cadáver que tem um vestígio visível, que seja possível de coleta, por exemplo, um projétil de arma de fogo. Eu vou retirar esse dispositivo e enviar para análise balística para saber de que arma veio, para saber de que calibre era. Enfim, para saber informações deste projétil. Também se couber a análise de uma secreção que está de baixo da unha da vítima, que contenha DNA do seu agressor, a gente colhe e envia para o laboratório. São várias possibilidades.
MidiaNews - Por que decidiu seguir nessa área da medicina?
Eduardo Andraus Filho - A aproximação entre a ciência investigativa e a medicina. Sempre foi do meu interesse.
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