Estudiosa da luta feminista em Mato Grosso, a professora e pesquisadora Qelli Rocha, apontou indícios de conservadorismo e machismo nos dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) ao barrar a filiação da atriz pornô Ester Caroline Perralto, a “Tigresa Vip”. Ela tentaria uma vaga na Assembleia Legislativa.
Qelli afirmou que ficou “estarrecida” com a decisão, tendo em vista que a sigla é conhecida historicamente por defender direitos da mulher e, inclusive, elegeu uma mulher como presidente do País, que passou por essa mesma violência política durante o processo de Impeachment, em 2015.
Pesou, na visão da professora e pesquisadora, o jogo político. Ela afirmou que atualmente Mato Grosso é um dos estados mais conversadores e machistas do Brasil.
“A ala que barrou [a filiação] o fez porque traz traços desse conservadorismo, desse machismo, desse patriarcado presente em Mato Grosso e é beneficiada por isso”, falou em entrevista ao MidiaNews.
“Por que se estou dentro de uma sociedade que é conservadora, vou excluir aquilo que é amoral ou imoral, para que eu tenha o voto dos conservadores ao meu favor. E isso é uma lástima porque, não é essa a proposta colocada desde o surgimento do partido até hoje”, acrescentou.
Qelli que faz parte do Núcleo de Estudos e Pesquisa Sobre a Organização da Mulher e Relações de Gênero (Nuepon) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e na entrevista ainda comentou sobre a importância das mulheres na política, violência e a luta pelos direitos das mulheres.
Leia os principais trechos:
MidiaNews - Como enxergou a repercussão que houve na sociedade quando a atriz pornô Tigresa Vip se lançou candidata à Assembleia?
Qelli Rocha – O que me chamou atenção não foi nem a repercussão, foi a proibição da afiliação dela ao partido. Me chamou atenção, porque é um partido que historicamente se colocou na esquerda, que elegeu uma presidenta mulher [Dilma Rousseff], que foi responsável por construir os dois planos nacionais de políticas para mulheres e, dentro desses planos, tratou sobre a mulher no mercado de trabalho, seja no mercado de trabalho formal ou outros que não são reconhecidos como profissão, por exemplo, as profissionais do sexo.
Aí, confesso que, particularmente, eu fiquei estarrecida. Me remeteu as falas que foram dirigidas à presidenta no impeachment. Na época, foi feito um adesivo em que ela aparece de pernas abertas com uma bomba de gasolina sendo inserida na sua vagina. Uma alusão ao estupro. Aquilo foi horrendo.
Imaginar que depois de seis, cinco anos desse processo, esse próprio partido aqui em Mato Grosso impugna a filiação de uma jovem que trabalha como profissional de sexo. É realmente um absurdo.
No meu entendimento quando ela procura a filiação, ela não procura só por si. Ela procura primeiro porque é jovem, e nós estamos passando por um processo de conservadorismo na sociedade desde esse período de ruptura até o momento atual. Além disso, porque ela está em um emprego que é desprivilegiado, que não é reconhecido, que não é assegurado.
E, por isso a minha surpresa, por todo esse contexto todo. É um partido que se coloca de esquerda, que construiu dois planos na gestão em que eles estiveram no governo, mas é um partido que em Mato Grosso se mostra extremamente conservador em relação a uma jovem que no momento é uma profissional do sexo.
MidiaNews - As chacotas nas redes sociais refletem o moralismo, machismo ou o quê?
Qelli Rocha - Machismo. E eu lamento muito que o partido ou uma parte do partido, não podemos generalizar, pense dessa forma.
E esse machismo no Estado... Se gente pegar, por exemplo, o Atlas da Violência, estamos em 5º lugar em número de feminicídio no Brasil. Por que um Estado como Mato Grosso que é rico, que tem políticas públicas para as mulheres, ocupa o 5º lugar no ranking dos estados do Brasil que mais pratica o feminicídio?
Recentemente, teve uma situação de uma mulher que fez um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher e, quando saiu da delegacia, foi espancada pelo marido na frente da delegacia. É um Estado que naturalizou, naturaliza a violência contra mulher seja ela simbólica, estrutural, psicológica, emocional e física.
MidiaNews - Depois da repercussão toda, o PT recusou a filiação da atriz. Considera que houve preconceito do partido com ela?
Qelli Rocha – A ala que barrou [a filiação] o fez porque traz traços desse conservadorismo, desse machismo, desse patriarcado e é beneficiada por isso.
MidiaNews
"Foi uma decisão banalizada para um perspectiva moral"
Por que se estou dentro de uma sociedade que é conservadora, vou excluir aquilo que é amoral ou imoral, para que eu tenha o voto dos conservadores ao meu favor. E isso é uma lástima porque, não é essa a proposta colocada desde o surgimento do partido até hoje.
Foi uma decisão banalizada para um persperctiva moral. E por que é uma persperctiva moral? Porque nós estamos em um Estado que mais elegeu mulheres ligadas à direita. 70 mulheres foram eleitas nas eleições municipais em Mato Grosso para cargos Legislativo e Executivo. Dessas, 77% são de partido conservadores. E qual é a pauta dessas mulheres conversadoras? É da tradição da família e da propriedade. Essas mulheres conservadores não tem entendimento do que significa a sociedade patriarcal machista. Ou elas têm o entendimento e ainda assim não sofrem tal como a mulher da classe trabalhadora. Talvez a ala que barrou esteja próximo ideologicamente dessa concepção conservadora que hoje é bastante enraizada no Estado.
Por isso, seria interessante eleger mulheres que estão em partidos democráticos, que pactuam com o pacto da democracia, da liberdade, da igualdade, da superação da opressão.
MidiaNews - O ex-juiz Julier Sebastião, que é do PT, criticou o partido pela atitude porque considera que por ser mulher, negra e de origem humilde, a atriz é o perfil das pessoas a quem o partido acolhe. Concorda com essa ideia?
Qelli Rocha – Concordo. A maioria das mulheres profissionais do sexo são negras e de origens humildes. Essas mulheres, independente de estarem nessa área profissional, ganham 40% a menos do que os homens e 10% a menos em relação às mulheres brancas ou não brancas.
Eu fiquei assombrada, estarrecida pela condição de exclusão. Porque se é um partido conservador, que se coloca como conversador, você não espera nada diferente. Mas quando é um partido que tem uma história de luta, de combate as opressões, de combate a exploração, naturalização, criminalizando e marginalizando esse segmento social, é um absurdo.
MidiaNews - Em toda eleição surgem denúncias e ações por causa de partidos que usam mulheres laranjas como candidatas apenas para cumprir as cotas estabelecidas pela lei. Por que isso ainda ocorre?
Qelli Rocha – Ocorre porque as mulheres desde o surgimento da humanidade não são educadas a vivenciar a vida pública. Desde a Idade Clássica, as mulheres não eram consideradas cidadãs e, por isso, não faziam política.
E mesmo com o desenvolvimento da sociedade com o passar dos séculos, isso não vem sendo alterado por conta do sistema patriarcal, que é anterior ao sistema capitalista. O sistema capitalista se apropria do sistema patriarcal que rechaça, que subjuga, que domina a mulher ao espaço privado.
Nós estamos chegando os dias das mães, e essa construção da maternidade, de que a mãe é responsável pelo cuidar, responsável pelo criar, toda essa construção simbólica acaba naturalizando esse lugar de não fazer política.
MidiaNews - Como acabar com essa prática?
Qelli Rocha – Construção. Fazer política para mulher não é fácil. Quando a mulher faz política, ela é associada a prostituição. Não é considerado um mérito, uma capacidade. Sempre quando uma mulher ascende em um lugar de poder, a sociedade geral pergunta vulgarmente para quem ela deu.
E política é um lugar duro, é sempre um lugar duro, porque são disputas políticas, ideológicas, econômicas e precisa ter um posicionamento mais firme. E nós não somos educadas assim. Desde que nascemos, nossos pais ensinam a gente a ser doce e dócil. Tanto que dão bonecas, ursinhos e é tudo muito contido para o corpo, não é para o externo. Os meninos sempre ganham brinquedos externos: pipa, bola, carrinho. O espaço público desde a primeira infância é destinado aos homens. Romper com isso não é tranquilo.
A laranjada, por exemplo, vem desse lugar, de que os homens estão acomodados que as mulheres não façam política e, quando as mulheres fazem política, tem que estar sob a tutela de um homem.
E aí se a gente for pensar, como é que a presidente foi eleita? Ela foi eleita por que foi apadrinha pelo líder populista [Lula]. Acaba que isso reforça no imaginário de que as mulheres não tem competência para fazerem política.
A mudança da legislação que colocou o coeficiente de 10% de participação das mulheres, fez e faz com que a maioria das mulheres que ocupem esses cargos não sejam mulheres que tenham reconhecimento da identidade de gênero.
Uma das coisas que a gente poderia ter reforçado e, infelizmente, o conservadorismo venceu foi a discussão do gênero nas escolas. Em 2013 nós tínhamos conseguido inserir no plano nacional de educação a discussão de gênero nas escolas. Em 2015 foi municipalmente retirado. Criaram uma fake news em cima disso que era para falar sobre sexualidade, mamadeira de piroca, kit gay. E não tinha absolutamente nada a ver com isso. Tinha a ver com educação, inclusive, que discutisse as desigualdades entre homens e mulheres e que as diferenças biológicas e fisiológicas não justificam e justificaram esse processo de opressão e exploração. O melhor caminho seria retornar a discussão disso nas escolas.
MidiaNews - Atualmente, a Câmara de Cuiabá tem duas vereadoras e a Assembleia, apenas uma deputada. Defende uma política de cotas que seja mais efetiva, como por exemplo, reservar um número de vagas para mulheres nas Assembleias ao invés de reservar nas chapas?
Qelli Rocha – Aí tem uma controversa. Ter cota para mulher não significa que o preenchimento será por mulheres capacitadas, qualificadas para isso. Tanto que 70% das mulheres eleitas são conservadores ou são mulheres que são utilizadas para que homens sejam eleitos. O que seria importante? A importância da participação da mulher na política de forma mais ampla. E aí de forma mais ampla as mulheres aprenderiam a fazer política e ao aprender fazer política, quando ocupassem esses cargos, que conseguissem trazer uma pauta mais libertária, mais emancipadora e trouxesse mais autonomia econômica para as mulheres.
Você pode ter 20%, 30% das vagas preenchidas por mulheres, mas se essas mulheres não entenderem que é importante pautar as questões relacionadas as mulheres, não vai adiantar de nada.
De 1917 pra cá a pauta geral das mulheres quando construíram a primeira greve internacional era creche, lavanderia pública e restaurante público para que elas fossem desoneradas dos trabalhos domésticos. Esses três serviços básicos até hoje não foram implementados. A creche veio para assegurar o direito da criança e não o direito mulher. Uma mulher que não trabalha formalmente não pode colocar o filho na creche. Lavanderia pública não tem. Restaurante público também não ou poucas cidades possuem. Ou seja, nada evoluiu nesse direito básico para mulher. E as mulheres hoje no legislativo ou executivo não pautam essa questão.
Atualmente, nem o sexo a mulher consegue fazer direito. Porque não temos tempo, não temos energia, disposição. Os dados do ambulatório de sexualidade da Universidade Estadual de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto mostra que 87% das mulheres não sentem orgasmo e elas não sentem orgasmo porque desconhecem o próprio corpo. Estou dizendo tudo isso, porque tudo isso é política. Uma pessoa que não conhece o próprio corpo, não sabe onde sente prazer, ela não é um ser social, é um objeto da sociedade.
MidiaNews
"Nem o sexo a mulher consegue fazer direito. Porque não temos tempo, não temos energia, disposição"
MidiaNews - A gente percebe que o assunto direito das mulheres ganhou mais relevância nas últimas décadas. Mas houve de avanço concreto em relação a políticas neste período?
Qelli Rocha – As mulheres podem participar da política com esse coeficiente de participação. As mulheres podem votar. As mulheres conquistaram o direito de criminalizar a violência, porque antes ela era legalizada, legitimada. Você podia matar uma mulher para lava sua honra e isso era super natural. Você podia raptar uma menor e deflorar essa menor e depois casar com ela para poder reparar, que não era considerado estupro.
O plano nacional de políticas para mulheres, as delegacias para mulheres nos municípios, a lei do feminicídio, a descriminalização do aborto nas três orientações constitucionais, mas que também é tema tabu.
Quanto mais mulheres conscientes estiverem ocupando cargo na política, melhores condições de vida outras terão.
MidiaNews - Considera que a violência contra a mulher aumentou nos últimos tempos ou ela agora tem mais visibilidade?
Qelli Rocha – Aumentou e por ter aumentado tem mais visibilidade. E tem mais visibilidade, porque a campanha iniciada em 1980 com a frase: “Em briga de marido a mulher, se mete a colher”, faz sentido hoje. As pessoas não conseguem mais se calar diante de uma violência que ela ouve ou vê e aciona a polícia rapidamente. Infelizmente, os homens não vão sair da condição de privilégio e mesmo o homem da classe trabalhadora. O homem da classe trabalhadora é privilegiado por não fazer o serviço doméstico.
Essas relações estão em processo de transformação hoje. A mulher sabe que tem equipamentos públicos sociais que pode recorrer, então recorre mais, mas o homem também se sente mais aguado pela possibilidade dessa mulher ter essa relativa automonia e, por isso, ele agride mais. 93% dos homens que agridem, agridem porque são machistas.
MidiaNews - O Nuepon está completando 30 anos de existência em 2022. Em sua opinião, qual a importância do núcleo para a sociedade mato-grossense?
Qelli Rocha – O Núcleo é extremamente importante para sociedade mato-grossense. Ele assessora, monitora, acompanha, implementa políticas internas e externas a Universidade.
O Nuepon surgiu nesse contexto de reabertura política do Brasil, da redemocratização desse estado conversador. Foi responsável por esse processo de implementação das delegacias para mulheres, da casa abrigo.
É núcleo que faz pesquisas sobre a rede de atendimento às mulheres vítimas de violência, sobre participação da mulher na política, que presta assessoria em diversas áreas como da saúde, educação, segurança e assistência social.
Estamos presentes no Conselho Municipal de Direitos das Mulheres, estamos presentes nas comunidades ribeirinhas, quilombolas, no movimento de mulheres sem terra.
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11 Comentário(s).
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Nascimento 05.05.22 09h07 | ||||
Não é traço conservador ou machista, é simplesmente o ego e poder que reina especialmente na esquerda: 1. Diz que defende o pobre, mas o " nine", também conhecido como ex-presidiário de Curitiba, usa um relógio de 90.000 reais, " doado" por um amigo, assim como Sitio de Atibaia, também era de um amigo. 2. Diz que defendo o negro e gay, mas na cupula do partido onde foi feito uma foto, havia somente homens brancos e aparentemente heterossexuais. Na mesma foto, havia somente duas mulheres e nenhum indigena ou Portador de Necessidades Especiais; 3. Diz que defende as mulheres, mas barrou a candidatura de uma mluher por preconceito e discriminação em relação ao trabalho dela ( sim, pode ser moralmente questionável , mas não deixa de ser um trabalho. Além disto, a mesma é uma CIDADÃ que tem o DIREITO de se candidatar), e como QUALQUER CANDIDATO passará pelas urnas. Eu não votaria nela, mas defendo o DIREITO da mesma se canditar. 4. O PT É A HIPOCRISIA, que utiliza pautas de " minorias" para perpetuar a cupula do partido, não gostam do povo, a não ser para fazer massa de manobra. | ||||
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Jackson Capistrano de Alencar 03.05.22 09h01 | ||||
É que a atriz não passou pelo conceito de beleza do PT, bonita demais para o cargo. | ||||
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Ademir 03.05.22 08h53 | ||||
Isso acontece com esta mesma mulher da entevista Qelli, diz que é feminista e não defende mulheres se for de direita, branca, uma classe social pouco maior que o dela, que não fale sobre feminismo, isso se chama Exclusão, então esta história de adotar minorias , é balela, eles são superficiais, ideológicos, e pequenos na sua origem!!!!! Começam e se afundam no próprio ego e ostracismo, Quando a máscara cai pra esquerda, é normal, só usam militantes pra seu grupo intacto goumet se manter no poder e desfrutar das mordomias, para os militontos acreditarem que eles defendem as "minorias". | ||||
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Romildo Gonçalves 02.05.22 11h41 |
Romildo Gonçalves, seu comentário foi vetado por conter expressões agressivas, ofensas e/ou denúncias sem provas |
Joao Tertulio 02.05.22 09h59 | ||||
Impressionante como a UFMT e todas as demais UFs são infestadas de PTistas!!! Essa "pesquisadora", o ex-Juiz Julier... todo mundo defende a "atriz" porque nenhum deles vai subir em palanque com ela. Só a tal ROSA NEIDE que esperneou porque ela é que seria a vidraça neste caso. Se a deputada não fosse deputada e, sim, "dirigente", "pesquisadora da UFMT", com certeza ela tambem defenderia o "direito das profissionais do sexo". Cada um com seu discurso de conveniência. | ||||
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