Cuiabá, Quarta-Feira, 5 de Novembro de 2025
"AMÉM JESUS"
05.11.2025 | 15h50 Tamanho do texto A- A+

PF: Filha de ministro do STJ recebeu por empresa ligada ao crime

Conversa no celular do lobista mato-grossense Andreson Gonçalves revela pagamento a Catarina Buzzi

Reprodução

Catarina Buzzi ao lado do pai, o ministro Marco Buzzi

Catarina Buzzi ao lado do pai, o ministro Marco Buzzi

BRENO PIRES
REVISTA PIAUÍ

A reprodução de uma intrigante conversa de WhatsApp foi uma das provas anexadas ao relatório mais recente da Operação Sisamnes, de combate à corrupção no judiciário brasileiro. Trata-se de um diálogo breve, resgatado do celular do lobista Andreson Gonçalves, hoje em prisão domiciliar, apontado como operador do esquema de venda de sentenças nos gabinetes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

 

A empresa RMD Instituição de Pagamentos não só está inserida dentro do esquema de lavagem de dinheiro do tráfico internacional, como também vem sendo utilizada para operacionalizar a movimentação de dinheiro ilícito em larga escala

Nessa troca de mensagens, um interlocutor identificado como “Carlos Chaves Brasil 10” (Carlos Chaves, dono da Brasil 10 Empreendimentos Imobiliários) informa para um contato que ele chama apenas de “dra.” (doutora) que transferiu 1,12 milhão de reais para a conta dela e para uma mulher chamada “Katarina Buzzi”. Chaves reclama, em seguida, que uma tal “promessa de trabalho” não fora cumprida, e que por isso quer seu dinheiro de volta.

 

O empresário detalhou essa  queixa em uma ação judicial na qual cobra o ressarcimento de 1,12 milhão de reais. O processo movido pela Indústria de Mineração e Construção Brasil, que também pertence à família Chaves, aponta que a “promessa de trabalho” era relacionada a uma disputa na Justiça Federal de Minas Gerais por um imóvel de 6,3 milhões comprado dos Correios em um leilão. Como prova, juntou prints das mensagens trocadas com o contato identificado como “Consultoria-DRA-KATARINA”.  

 

Catarina Buzzi (com C, e não K) é o nome de uma advogada filha do ministro Marco Buzzi, do Superior Tribunal de Justiça. Na época em que aquela mensagem foi enviada, o ministro tinha em mãos um processo que interessava muito a Chaves e sua família: nele, a mãe de Carlos Chaves tentava invalidar a penhora de uma fazenda na execução de uma dívida ajuizada por uma empresa chamada LAC Engenharia. O pagamento do 1,12 milhão de reais que o empresário relatou ter feito a Catarina ocorreu cinco meses depois da primeira decisão do ministro no processo, que foi contrária ao empresário. O magistrado, porém, nunca mudou de posição.

 

Chama a atenção o fato de que, em novembro de 2022, quando do pagamento pela “assessoria e consultoria jurídica” (palavras da ação de cobrança de Chaves), Catarina ainda não tinha o registro da OAB, que permite exercer a advocacia. A carteirinha só foi obtida dois meses depois. A ação contra ela na justiça cita esse fato e aponta até “exercício ilegal da profissão” de advogada, sustentando que lhe foram pagos “honorários advocatícios”.

 

Procurada pela piauí, Catarina nega que tenha recebido qualquer dinheiro, afirma que “não prestou assessoria jurídica” e que “não tem qualquer tipo de relação com as empresas mencionadas”. Mas não explica por que acabou assinando um acordo que envolve ressarcimento a Chaves (a piauí não teve acesso aos termos e valores dessa tratativa).

 

Em seu relatório, a Polícia Federal registrou o print com a queixa do “descumprimento de promessa ajustada”, como algo que deveria ser apurado em um procedimento separado, mas não deu detalhes sobre a transação milionária.

 

A piauí seguiu as pistas da denúncia do empresário Carlos Chaves e de investigações recentes da Polícia Federal. Descobriu que a empresa a receber a maior parte do dinheiro, 800 mil reais, é investigada pela PF sob suspeita de integrar esquemas do crime organizado.

 

Trata-se da RMD Instituição de Pagamento, que até setembro de 2023 tinha o nome de RMD ADM Empresarial Ltda, com o qual aparece em um comprovante de pagamento de Chaves. Em casos que não têm relação com a Operação Sisamnes, a PF aponta que a empresa lava dinheiro para o PCC, a maior organização criminosa do país, também lava dinheiro do narcotráfico internacional, além da máfia chinesa em São Paulo.

 

O fio da meada a ser puxado na história começa em 2022, ano do pagamento. No ano seguinte, Chaves entrou na Justiça para cobrar Catarina pelo serviço de “assessoria e consultoria jurídica” que nunca foi cumprido, conforme registro na ação de cobrança. A existência do processo foi noticiada em agosto de 2023 pelo site Metrópoles. Advogados da família Chaves também pediram que o ministro Buzzi se declarasse suspeito de julgar o processo do qual era relator — ele se declarou impedido, por razão de foro íntimo, após o caso se tornar público.

 

No documento, Chaves contou que pagou 220 mil reais em espécie pessoalmente a Catarina Bruzzi em seu escritório no Complexo Brasil 21, em Brasília; outros 100 mil reais a um escritório parceiro na consultoria, da advogada Aline Gonçalves de Sousa, que é esposa do desembargador César Jatahy, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região; e finalmente transferiu os 800 mil reais à RMD, empresa que leva as iniciais do nome do dono, Ricardo de Moraes Daffre. Foram duas transferências TED, uma de 500 mil reais e outra de 300 mil reais (na ocasião da segunda, diante da confirmação do pagamento, o contato Consultoria-DRA-KATARINA celebra em uma mensagem: “Amém Jesus”).

 

Os documentos aos quais a piauí teve acesso não especificam se ou quanto dos 800 mil reais recebidos pela RMD foram subsequentemente destinados a Catarina Buzzi. 

 

A RMD aparece na segunda fase da Operação Mafiusi, uma investigação tocada pelo Gise, o Grupo Especial de investigações Sensíveis em Curitiba, deflagrada pela Polícia Federal no Paraná em 16 de outubro de 2025. No inquérito, a empresa é descrita como “uma das fintechs a serviço do crime organizado”, usada para lavar recursos do tráfico internacional de cocaína em um esquema que conectava o PCC à máfia italiana ’Ndrangheta. Segundo a PF, o verdadeiro controlador da RMD é o ex-policial militar Maicon Adriano Vieira Maia, preso na operação e apontado como doleiro e operador financeiro do PCC. 

 

Na decisão da 23ª Vara Federal de Curitiba, que autorizou as medidas, o juiz federal Nivaldo Brunoni reproduziu um trecho do relatório da PF que registra haver “fortes indícios de que a empresa RMD Instituição de Pagamentos não só está inserida dentro do esquema de lavagem de dinheiro do tráfico internacional que está sendo investigado na Operação Mafiusi, como também vem sendo utilizada para operacionalizar a movimentação de dinheiro ilícito em larga escala”. Mais à frente, a decisão judicial repete a conclusão da PF: “Tudo indica que a RMD […] seja uma das fintechs atualmente a serviço do crime organizado.”

 

Em agosto passado, Daffre foi preso em uma outra investigação, sobre a máfia chinesa em São Paulo. Além disso, a RMD é mencionada em um inquérito da Polícia Civil de São Paulo sobre uma organização criminosa especializada em fraudes eletrônicas, suspeita de movimentar 480 milhões de reais em apenas seis meses, “funcionando com verdadeira lavadora terceirizada”.

 

A piauí teve acesso ao relatório de indiciamento dos investigados, incluindo Ricardo de Moraes Daffre, sob suspeita de integrar organização criminosa.

 

“A OrCrim [organização criminosa] movimentou durante poucos meses de atuação quase meio bilhão de reais”, destacou a Polícia Civil de SP.

 

No relatório da Polícia Federal, a menção a Catarina se deu como um exemplo da aproximação de um investigado no caso das vendas de sentença, Haroldo Augusto Filho, sócio do Grupo Fource, com parentes de ministros do STJ. “Sou amigo da mãe, da filha”, disse Haroldo a Roberto Zampieri em maio de 2022, ao referir-se ao ministro Marco Buzzi, do STJ. Zampieri, assassinado em Cuiabá em dezembro de 2023, é o pivô da Operação Sisamnes, que só teve início graças à descoberta, em seu celular, de mensagens que indicavam corrupção na Justiça. A própria Catarina também trocou mensagens com ele: “Dr Roberto! Tomei a liberdade de pedir seu número ao Haroldo. Agora está na agenda. Foi um prazer reencontrá-lo Catarina Buzzi.” Zampieri respondeu: “O prazer é todo meu”. 

 

Os diálogos, incluídos nos arquivos analisados pela PF, mostram que Catarina mantinha contato com dois dos personagens centrais do caso Sisamnes, no mesmo período em que recebeu os pagamentos do empresário Carlos Chaves.

 

Quando o Metrópoles notificou a ação de cobrança, Catarina Buzzi disse ao portal que tudo era mentira: nunca havia trabalhado para a empresa, não foi a interlocutora das conversas e provaria tudo isso na Justiça. Ela também lamentou que “esse tipo de denúncia vazia, destinada a constranger a honra e a imagem de advogados, continuem a repercutir”. Meses depois, no entanto, as partes fizeram um acordo, que envolve ressarcimento a Chaves (a piauí não teve acesso aos termos e valores dessa tratativa). Em março de 2024, a 6ª Vara Cível de Brasília declarou o cumprimento integral desse acordo firmado entre as partes, extinguindo o processo com resolução de mérito.

 

Procurada pela piauí, Catarina voltou a negar ter recebido ou feito qualquer pagamento, mas deixou sem resposta a pergunta sobre o acordo. A nota enviada por meio de seu advogado João Pedro de Souza Mello diz o seguinte:

 

“A advogada Catarina Buzzi não recebeu qualquer valor das empresas Indústria de Mineração e Construção Brasil e da RMD. A advogada não prestou assessoria jurídica e não tem qualquer tipo de relação com as empresas mencionadas.

 

O processo citado pelo repórter diz respeito à compra de um imóvel em leilão e não tem qualquer vínculo com os casos investigados na Operação Sisamnes. 

 

Até onde se sabe, o processo foi encerrado e não houve condenação de quem quer que seja.

 

O assunto já foi divulgado há mais de dois anos por alguns sites. 

 

É lamentável que os mesmos personagens, que tentaram criar um falso escândalo no passado, tentem misturar notícia velha com investigação em andamento para atingir determinadas pessoas.

 

A advogada não se responsabiliza por conversas de terceiros em WhatsApp, ainda mais conversas sem qualquer relevância jurídica.

 

Catarina Buzzi não é alvo de investigação supervisionada pelo Supremo Tribunal Federal ou por qualquer outra instância.

 

O ministro Marco Buzzi respondeu por meio da assessoria de imprensa do STJ:

 

Quanto à investigação realizada pela Polícia Federal, referida em sua indagação, o ministro Buzzi informa que nunca teve ou buscou ter acesso ao seu conteúdo, exceto pelo que a imprensa tem divulgado.

 

No que diz respeito às relações profissionais da sua filha, afirmou que não as acompanha, destacando que tem nela uma pessoa de absoluta boa-fé.

 

O ministro, quando se declara impedido de participar de determinados julgamentos, o faz conforme critérios previstos em lei. Não há que se falar em exceções à regra.

 

No mais, não cabe ao ministro tecer comentários sobre hipóteses ou deduções apriorísticas de fatos indefinidos e de pessoas não conhecidas.

 

A piauí também enviou perguntas à advogada Aline Gonçalves, que, por meio de seu advogado, Lalbert Gomes, confirmou ter sido contratada pelo empresário Chaves e que o contrato foi encerrado com um acordo na justiça:

 

O contrato de assessoria jurídica relacionado à compra de um imóvel em leilão não se desenvolveu como inicialmente ajustado. O contrato foi rescindido por acordo homologado em juízo. A advogada desconhece a RMD e não se responsabiliza por supostos pagamentos de ex-cliente a terceiros. Aline Gonçalves não é investigada na Operação Sisamnes. Todos os seus atos, sejam processuais, contratuais ou financeiros, estão amparados em documentação comprobatória e são pautados pela legalidade, ética e militância na advocacia.

 

O empresário Carlos Chaves não se manifestou. A RMD e seu dono Ricardo de Moraes Daffre não foram localizados.

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