Cuiabá, Terça-Feira, 8 de Julho de 2025
CHRISTIANY FONSECA
08.07.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Corta-se a merenda, mas jamais o caviar

Países com menor desigualdade social que o Brasil estão à frente no processo

Enquanto França, Dinamarca e até a Suíça discutem como tributar melhor seus milionários, o Brasil ainda hesita. Mais do que hesita: resiste com ferocidade a qualquer tentativa de fazer os mais ricos contribuírem um pouco mais com a sociedade que os fez tão ricos. Paradoxo? Não. Apenas o velho pacto oligárquico tropical, reeditado no Congresso Nacional sob a capa de “responsabilidade fiscal”.

 

Em julho de 2025, durante a cúpula da ONU em Sevilha, o Brasil se juntou a países como França, Espanha e África do Sul em uma proposta de criar um imposto global mínimo de 2% sobre grandes fortunas. A iniciativa, defendida por economistas como Gabriel Zucman e Thomas Piketty, parte de uma constatação brutal: a concentração extrema de riqueza é um risco para a democracia e para a coesão social.

 

Países com menor desigualdade social que o Brasil e com muito mais infraestrutura pública estão à frente desse processo. A Suíça, por exemplo, aplica há décadas um imposto sobre grandes patrimônios, com eficácia comprovada na contenção da concentração de riqueza. A Dinamarca, com uma das cargas tributárias mais progressivas do mundo, financia um dos melhores sistemas de bem-estar social do planeta. A França voltou a debater seriamente a taxação dos super ricos com o projeto da chamada “taxe Zucman”, já aprovado em primeira instância no Parlamento.

 

Esses países fazem parte da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), grupo formado majoritariamente por economias desenvolvidas que compartilham boas práticas de governança, justiça fiscal e bem-estar social. Lá, a desigualdade tende a ser menor não por acaso, mas por escolha política: os mais ricos pagam proporcionalmente mais impostos, e o Estado investe de forma consistente em serviços públicos.

 

No Brasil, defender a taxação das grandes fortunas ainda é visto como uma bandeira exclusiva da esquerda, quase um tabu ideológico. Mas essa visão é equivocada e limitada. Em diversos países da OCDE, muitos deles governados por partidos de direita ou com políticas econômicas liberais, a taxação progressiva sobre fortunas e rendas elevadas é praticada com naturalidade e responsabilidade. Cobrar mais de quem tem mais não é uma pauta ideológica, mas uma exigência de justiça fiscal e de sustentabilidade social. O que no Brasil ainda é tratado como radicalismo, no restante do mundo democrático já é prática consolidada.

 

Ou seja, a taxação de grandes fortunas funciona, tem respaldo técnico, e é aceita socialmente em países muito mais estáveis que o nosso. O que isso produziu? Menos desigualdade, maior coesão social, mais investimentos públicos em bem-estar, educação e saúde. Não foi o “caos tributário” que alguns alarmistas anunciam. Foi o oposto: foi civilização.

 

O economista Celso Furtado, em sua obra clássica Formação Econômica do Brasil, já identificava um traço estrutural da elite econômica brasileira: o acúmulo de renda sem compromisso com a redistribuição ou com mudanças profundas na estrutura social. Para ele, crescimento sem justiça social era um projeto incompleto. Décadas depois, o diagnóstico permanece atual, a concentração de riqueza continua crescendo, enquanto a disposição para redistribuir segue mínima, muitas vezes sufocada por pressões organizadas nos bastidores do poder.

 

E o mais trágico: não há resistência popular contra a taxação dos super ricos. Ao contrário, pesquisas mostram que mais de 70% dos brasileiros (e até milionários entrevistados em países do G20) são favoráveis à criação de impostos sobre grandes fortunas. O problema não está no povo. Está em quem diz representá-lo.

 

Recentemente, o Congresso derrubou o decreto presidencial que aumentava o IOF sobre fundos exclusivos e o Fiagro, instrumentos usados majoritariamente por milionários para blindar patrimônio. A justificativa? Não se deve aumentar impostos, especialmente sobre investimentos. E qual foi a solução alternativa defendida por alguns parlamentares? Cortar despesas. Mas que despesas?

 

Não foi sugerido cortar auxílios parlamentares, o fundo eleitoral, as emendas parlamentares ou as renúncias fiscais a grandes conglomerados. O que se colocou sobre a mesa foram as verbas de saúde, educação e programas sociais. Essa é a lógica do sacrifício seletivo: o topo da pirâmide continua intocado, enquanto a base social deve pagar a conta.

 

Enquanto isso, a proposta do governo de isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais se apresenta como um avanço real. Tecnicamente, já era hora: a tabela do IR está defasada em mais de 150% desde 1996. Se essa defasagem fosse totalmente corrigida, o limite de isenção deveria estar hoje em R$ 5.136,81. Corrigir isso é corrigir uma injustiça histórica. No entanto, mesmo essa proposta enfrenta resistência dentro do Congresso, o que revela um traço perverso da nossa elite política: ela não quer tributar os de cima e nem aliviar os de baixo. Garantir mais renda para o trabalhador pobre e de classe média, para muitos parlamentares, parece “oneroso demais”. Já manter os benefícios de quem lucra milhões com isenção, não. Esse desequilíbrio é tão revelador quanto revoltante.

 

O sociólogo Jessé Souza, em A Elite do Atraso, analisa como a desigualdade brasileira não é apenas uma herança passiva da história, mas uma construção ativa, sustentada por decisões políticas e interesses econômicos que operam, muitas vezes de forma invisível, nas estruturas do poder institucional. Ele aponta como parte expressiva da elite econômica influencia o jogo político sem depender diretamente do voto, mas atuando por meio de financiamentos de campanha, articulações discretas e mecanismos legais que tornam possível algo profundamente injusto: que bilionários contribuam proporcionalmente menos ao Estado do que professores.

 

Enquanto o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição de 1988,  jamais foi regulamentado por falta de vontade política, medidas mais modestas, como o PLP 1.087/2025, também enfrentam resistência. A proposta estabelece uma alíquota mínima de 10% sobre rendas anuais superiores a R$ 600 mil. No Brasil, essa alíquota já representaria um avanço significativo, diante do profundo desequilíbrio do nosso sistema tributário, que historicamente protege os mais ricos. Em países como os da OCDE, no entanto, taxas sobre rendas elevadas podem chegar a 23%.

 

Hoje, apenas 141 mil brasileiros estão nessa faixa de renda. Um número pequeno, mas com potencial significativo para aumentar a arrecadação. Ainda assim, a proposta caminha com dificuldade, barrada por interesses que rejeitam qualquer avanço em direção à justiça fiscal.

 

O mais simbólico é que se o Brasil hesita até mesmo em taxar rendas altas, quanto mais grandes fortunas. Desde 1988, várias tentativas de regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas foram apresentadas no Congresso. Todas fracassaram: arquivadas ou engavetadas em comissões, sem sequer chegar ao plenário. Essa resistência é sistemática e reflete os interesses de uma elite política que protege o topo da pirâmide.

 

Confunde-se deliberadamente quem tem renda alta com quem detém riqueza acumulada, blindando ambos sob o manto da defesa do investimento. Mas o que se protege, na prática, não é investimento. É privilégio.

 

Então, fica a pergunta: por que o Congresso eleito por um povo majoritariamente pobre resiste tanto a fazer os ricos pagarem mais? Por que tanta agilidade para cortar gastos com saúde, educação e assistência social, mas tanta lentidão para votar uma taxação que só atinge o topo da pirâmide?

 

Talvez porque o Congresso não esteja, de fato, representando os interesses da maioria da população. Talvez, como analisa Jessé Souza, ele esteja mais alinhado a uma lógica de poder que se perpetua ao naturalizar a desigualdade, como se não houvesse outro caminho possível além da manutenção dos privilégios.

 

Mas há. A alternativa passa por taxar os que mais têm, proteger os que menos têm e reconstruir o pacto social brasileiro com base em justiça e não em privilégios. No fim das contas, o problema nunca foi a falta de dinheiro. Foi, e ainda é, a falta de coragem para buscá-lo no lugar certo. Porque no Brasil, o cardápio fiscal é seletivo: corta-se a merenda, mas jamais o caviar.

 

Christiany Fonseca é professora efetiva do IFMT, Cientista Política e Doutora em Sociologia.

*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do MidiaNews. 

 

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