Cuiabá, Quarta-Feira, 13 de Agosto de 2025
RODRIGO BASTOS DA SILVA
13.08.2025 | 05h30 Tamanho do texto A- A+

Do crime ao combate

Quando o dinheiro sujo paga a conta da segurança da população

Por décadas, o Brasil conviveu com uma contradição silenciosa. Embora a segurança pública seja, desde a Constituição de 1988, essencialmente descentralizada — com execução primária a cargo das Polícias Civis e Militares de cada Estado —, o produto do crime organizado, após decisão judicial de perdimento, ia quase sempre para os cofres da União. Na prática, quem enfrenta o problema diariamente na linha de frente ficava de mãos atadas, enquanto os recursos seguiam para instâncias distantes, sem ligação direta com as necessidades operacionais locais.

               

Essa lógica centralizadora gerava distorções evidentes. É incoerente imaginar que uma facção criminosa desarticulada no interior de um Estado gere milhões de reais em bens e dinheiro e que tais valores não sejam reinvestidos na estrutura que efetivamente a desmantelou. Em vez de fortalecer as forças policiais responsáveis pela investigação e repressão, o modelo antigo afastava os recursos da realidade onde o crime acontecia, reduzindo a agilidade das respostas e o impacto das políticas públicas.

               

O cenário começou a mudar com o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019). A legislação solidificou a possibilidade de que o produto de bens perdidos, convertidos em renda após decisão judicial, fosse destinado não apenas à União, mas também aos Estados e ao Distrito Federal, proporcionalmente à atuação na persecução penal (art. 144-A, §3º do CPP). Essa alteração rompeu a barreira da centralização e inaugurou uma abordagem estratégica mais coerente com o modelo federativo brasileiro, aproximando a fonte de recursos de quem tem maior urgência e conhecimento para aplicá-los.

A experiência mato-grossense demonstra que é possível transformar o lucro do crime em benefício direto para a sociedade

               

A descentralização é fundamental porque reconhece que o combate eficiente às facções e organizações criminosas se torna mais assertivo quando seus recursos são geridos e aplicados por quem está próximo aos eventos. Isso permite adaptar a aplicação do dinheiro às necessidades específicas de cada região, maximizando o impacto da ação estatal. A proximidade com os fenômenos criminosos possibilita decisões mais ágeis, informadas e voltadas às prioridades locais, sem depender da burocracia e dos filtros políticos de Brasília.

               

Mais do que uma questão de lógica administrativa, essa mudança cria um ciclo virtuoso: capital ilícito é convertido em investimento direto em segurança pública. Armas, viaturas, tecnologia e capacitação passam a ser financiadas com o próprio dinheiro das facções. Trata-se de valorizar o trabalho policial, garantir retorno concreto às equipes que atuam em campo e, ao mesmo tempo, aumentar a capacidade investigativa e operacional das forças de segurança.

               

Esse mecanismo já tem resultados práticos. Em Mato Grosso, por exemplo, foi sancionada a Lei nº 12.602/2024, que institui o Fundo Especial da Polícia Judiciária Civil (FUNDEPOL). O fundo destina parte dos valores obtidos com o perdimento de bens para financiar investigações, programas de inteligência, aquisição de equipamentos e treinamento de servidores, prevendo ainda a partilha com a Secretaria de Segurança Pública para ampliar o alcance dos investimentos.

               

Um caso emblemático desse potencial foi a Operação Apito Final, deflagrada em 2024 pela Gerência de Combate ao Crime Organizado (GCCO) da Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso, que resultou no sequestro de bens e valores avaliados em mais de 7 milhões de reais. Se totalmente revertidos ao FUNDEPOL, esses recursos seriam suficientes para financiar, por exemplo, a modernização de delegacias estratégicas, a aquisição de viaturas especializadas e o fortalecimento de áreas de inteligência, gerando impacto direto e imediato na capacidade de combate ao crime.

               

A experiência mato-grossense demonstra que é possível transformar o lucro do crime em benefício direto para a sociedade. Ao direcionar recursos confiscados para ações de prevenção e repressão, o FUNDEPOL não apenas fortalece a Polícia Judiciária Civil do Mato Grosso, mas também beneficia a população com uma resposta mais rápida, qualificada e equipada. Além disso, é uma estratégia de baixo impacto orçamentário: não depende de aumento de tributos nem de remanejamentos que comprometam outras áreas, pois utiliza o próprio patrimônio das organizações criminosas como fonte de custeio.

               

Ao descentralizar esses recursos, Mato Grosso prova que é possível alinhar eficiência administrativa, inteligência estratégica e fortalecimento da segurança pública. A experiência do Estado mostra que, quando a lei é bem aplicada e os recursos são bem geridos, é viável inverter a lógica e usar o lucro do crime contra o próprio crime — e, mais do que isso, transformar cada bem confiscado em mais segurança, mais estrutura e mais resultados para a população.

 

Rodrigo Bastos da Silva é delegado-geral-adjunto da Polícia Judiciária Civil do Mato Grosso

 

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