O delegado Bruno Abreu, da Delegacia Especializada de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Cuiabá, responsável por investigar crimes de grande repercussão, como o homicídio do ex-presidente da OAB-MT (Ordem dos Advogados do Brasil), Renato Nery, afirmou que a violência cresce no mesmo ritmo da tensão social.

Ele citou feminicídios, como o caso da Solange Sobrinho, que foi estuprada e assassinada na UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), conflitos banais e crimes ligados ao tráfico como os que mais chegam à DHPP.
“Não existe crime perfeito. Existe crime mal investigado. Não porque o policial é ruim ou é preguiçoso, mas porque, às vezes, o número de processos, de pessoas, não consegue acompanhar o ritmo da sociedade. É cada vez mais homicídios, discussões, intolerância religiosa, intolerância racial. Tudo faz com que os homicídios cresçam", disse em entrevista ao MidiaNews.
Ao relembrar o caso Nery, o delegado falou que o maior desafio da investigação é vencer o próprio cérebro. A representação que o advogado protocolou na OAB, escrita antes de morrer, que Bruno chama de “enredo do crime”, trouxe pistas importantes, mas também o risco de aprisioná-lo ao viés de confirmação.
"Esse viés de confirmação foi muito difícil de a gente mudar os rumos. O que é um viés de confirmação? É um viés cognitivo, é um erro sistêmico do nosso cérebro, que a gente, ao fixar uma hipótese, quer buscar elementos que fortaleçam a hipótese inicial. Coube a nós sentar, com sabedoria, coragem, resiliência, equilíbrio emocional e senso de justiça para entender que poderia não ser isso", explicou.
A experiência na unidade, que integra há três anos, mudou a percepção sobre o tempo e o ensinou a valorizar a vida. Segundo ele, o trabalho o amadureceu e o transformou, principalmente pela convivência diária com a morte e rotinas que começam e seguem sem previsão de terminar.
O delegado ainda contou um pouco mais sobre sua vida, falou sobre outras investigações, qual planos têm para o futuro e deu detalhes sobre outros casos.
MidiaNews - O senhor está na delegacia de homicídio há quantos anos já?
Bruno Abreu - Três anos. Como delegado, 14 anos, aproximadamente. Mas mexendo só com homicídio, há quase três anos.
MidiaNews - E nesse período, percebeu algum tipo de crime que acontece com mais frequência, como homicídios motivados por ciúmes, disputas financeiras ou ligados à facção criminosa?

Bruno Abreu - A mudança da sociedade, a densidade urbana, essa pressão psicológica que a gente está vendo, fazem com que muitas conversas que terminavam em palavras, hoje terminem em tragédias. Em termos de crime específico, o tráfico de drogas, infelizmente, predomina. Seja a pistolagem, seja a prática direta de facções. A guerra entre facções também.
Os feminicídios, que são crimes de intolerância em relação à mulher, por não respeitar a liberdade da mulher e não aceitar um término, por exemplo. Esses são crimes que aumentaram bastante.
Em relação ao feminicídio, na Delegacia de Homicídios, só temos um que o suspeito se encontra foragido. Mas o inquérito se encontra pronto, concluído. Então, temos um êxito bastante legal em relação aos resultados de crimes de feminicídio.
MidiaNews - O que lhe motivou escolher a carreira de delegado? E, mais especificamente, trabalhar em Homicídios, como tem feito nesses últimos três anos?
Bruno Abreu - Eu não vou saber muito explicar, porque trabalhei no Fórum do Rio de Janeiro com meu pai por mais de 10, 15 anos. Eu convivia com juízes, promotores, desembargadores, porque tinha uma livraria jurídica lá dentro. E era eu quem fazia as entregas de livros.
Eu conversava diariamente com eles, e a pressão era muito grande para fazer concurso de juiz, promotor, desembargador. E eu acho que o tempo que fiquei ali, a única coisa que não queria é ficar naquele ambiente. Não sei, era coisa mais de criança, tinha 16, 17 anos.
E surgiu a prova de delegado, vim fazer. Fui analista de um promotor de São Paulo. Trabalhei com diversos analistas, que hoje são todos os promotores. Eu sou o patinho feio da minha turma. Sofri bronca do meu chefe, na época, porque estava indo embora da instituição.

Mas eu queria novos rumos e sempre tento novas oportunidades. Eu falo que o sucesso de um ser humano é agarrar as oportunidades que a vida te dá. E eu sempre agarrei as oportunidades que a vida me deu. Acho que talvez isso gera um pouco do meu sucesso pessoal.
MidiaNews - Na delegacia de homicídios o senhor convive diariamente com cenas de violência, além do sofrimento das famílias. Existe algum tipo de acompanhamento psicológico para os investigadores e os delegados?
Bruno Abreu - Sim, nós temos o programa Mão Amiga, o programa Escuta, da SUSP, que acompanha policiais que precisam de ajuda de forma on-line. Eu nunca precisei, Graças a Deus, mas se um dia precisar não vou hesitar em pedir acompanhamento. Eu acho que a Polícia Civil hoje teve uma mudança de postura muito interessante quanto aos policiais que fazem atividades físicas.
Eu acho que atividade física é o caminho da liberdade, do sucesso, dos problemas psicológicos que enfrentamos hoje. É muita pressão, realmente. A delegacia de Homicídios é uma delegacia diferenciada. É uma delegacia que não é pra qualquer um. Eu falo isso com toda clareza.
Desculpa os colegas que entenderam diferente, mas não é em termos de profissional ou de competência. É termos de lidar com a pressão, de o telefone tocar de madrugada, 3 horas da manhã, 4 horas da manhã, você ter que acordar, respirar e ir lá, sabendo que uma história foi interrompida, sabendo que vai encontrar uma família devastada. E você, por mais que tenha problemas, tem que deixar isso em casa, chegar no local de crime e demonstrar ser a pessoa mais serena possível. E resolver o caso.
MidiaNews - A sociedade costuma ver apenas o resultado final, com a prisão ou o indiciamento dos suspeitos que cometeram os crimes. Mas pouco se fala sobre como é a rotina dos investigadores e dos delegados. Como é essa rotina?
Bruno Abreu - É uma delegacia que é impossível você ter uma rotina. É uma delegacia do Estado que faz expedientes e plantões. É uma delegacia totalmente silenciosa em relação à sociedade. O delegado fica 24 horas acordado com o telefone na mão, no bolso, 24 horas esperando uma ligação tocar. Só que essa ligação que vai tocar, é a ligação de uma morte. Isso já traz um peso muito grande, uma responsabilidade.

A Delegacia de Homicídios, para mim, me trouxe algo muito bom. Me trouxe uma maturidade que talvez nenhum trabalho traria. Ela me trouxe um senso de justiça, um senso de dar valor ao tempo.
A gente vê que vai passando os dias, e vê que o tempo é o bem mais precioso que nós temos. Eu converso com minha esposa, eu converso com os colegas, eu falo: ‘Gente, vamos parar de besteira. Se preocupa com sua atividade mental, psicológica. Frequente a academia’. Porque a academia abre os caminhos para tudo. Ela caminha para o bom humor, para o bom sono, para uma testosterona alta, para uma disposição, para um bom libido numa relação sexual. Estou falando aqui de forma aberta.
Então, quando o policial fala: ‘Hoje eu vou chegar mais tarde porque eu vou treinar’. Eu falo: ‘Vai. Vai feliz’. Chegou na delegacia, cada um tem sua atribuição, sua responsabilidade. Esse lance de horário é muito relativo na DHPP.
Porque, você imagina, você faz um plantão de 24 horas. Ele pode ter um homicídio, ele pode ter três homicídios, quatro homicídios. Quando você sai do plantão, o plantão não sai de você. Porque num plantão normal, você vai para casa descansar. Na Homicídios, muitas vezes, a mãe quer uma resposta às 9 horas da manhã. E ela não quer falar com o investigador, ela quer falar com você. E, às vezes, você está ali há 30 horas, 36 horas sem dormir.
E as primeiras diligências num homicídio são muito importantes. A gente chama de provas irrepetíveis. São provas que vão se perder. E você tem que ter todas as virtudes, resiliência, coragem, sabedoria, força de vontade, senso de justiça. Como eu falei, em um crime patrimonial, a pessoa está esperando o patrimônio de volta. Na vida, a única coisa que você pode trazer para ela é a verdade. Ela está esperando o conforto da verdade. Nós temos esse problema.
MidiaNews - O senhor tem algum projeto ou outra área de investigação que pretende atuar ou acha que vai continuar na Homicídios por um bom tempo?
Bruno Abreu - Não, eu tenho vontade de continuar. É muito cansativo, é uma profissão que exige muito de tudo que falei aqui para você, mas meus projetos são continuar na Homicídios, até porque, em dois anos, ela me fez um homem melhor, uma pessoa melhor. Me fez valorizar coisas que eu não valorizava. Então, minha intenção é continuar na Homicídios. É uma unidade que me deixa muito feliz. Em relação a projetos, eu prefiro continuar no time que está ganhando.
MidiaNews - O senhor foi responsável pela investigação do homicídio do advogado Renato Nery, em julho de 2024, que teve enorme repercussão, não só pela relevância da vítima, que foi presidente da OAB-MT, mas também por ter acontecido poucos meses após um outro advogado ter sido assassinado, também em Cuiabá. Logo no início das apurações, o senhor já tinha percebido que se tratava de um crime de pistolagem?

Bruno Abreu - Essa era uma hipótese que a gente já tinha, inicialmente. Quando saí da delegacia, a primeira coisa que vem à cabeça é isso. Mas esse é um dado que a gente tem que ter muito cuidado numa investigação. Quando a gente chega na cena do crime, muitas vezes, e isso foi uma frase que escutei no início, a cena do crime conversa com você. Eu não entendia no início, mas com maturidade de investigação você começa a entender.
Quando chegamos lá, vimos que a vítima não estava mais no local, que estava preservado, com bastante policiais militares e civis tentando entender. Cápsulas no chão. A única câmera que estava disponível no local, estava quebrada. Tínhamos um atirador com uma moto sem placa, que um dia depois, descobrimos que rodou 30 km com aquela moto e desapareceu. Isso demonstra, inicialmente, uma forma de pistolagem.
As investigações continuaram e aquilo que era uma formiguinha, se tornou um formigueiro em relação aos indícios de pistolagem. E aí, precisávamos entender, num crime de pistolagem, quem tem o papel de autor principal, quem tem o papel de coadjuvante. Quem são os intermediários, se tinha realmente intermediários, logística, executor.
E a dificuldade ali, no caso, era que a gente não sabia quem era o executor. As imagens dele atirando na vítima, não tínhamos. O que tínhamos era a altura dele, com base na perícia que a gente fez [por meio das outras imagens de câmeras de segurança], que bateu exatamente com a altura do Alex [Roberto de Queiroz]. Mas isso, isoladamente, não é nada.
Quando a gente traz para dentro do inquérito, consegue trazer essa prova que é mais um indício contra ele. Então, a gente entendeu em poucos dias que isso se tratava de um crime de pistolagem, muito também em razão da petição que a gente recebeu da OAB logo depois.
MidiaNews - Esses crimes que envolvem pessoas com alto poder aquisitivo, como é o caso dos suspeitos de serem mandantes, o casal de empresários, Julinere Bentos e o Cesar Jorge Sechi, de Primavera do Leste, costumam ser naturalmente mais complexos? O que tornou essa investigação particularmente difícil?
Bruno Abreu - Todo empresário bem-sucedido, se você ver, quer se cercar de pessoas bem-sucedidas. Então, ele quer pessoas bem-sucedidas para dar continuidade àquela empresa. E para a prática de homicídio, não deixa de ser diferente. Eles se cercaram de pessoas profissionais, como foi mostrado ao longo do inquérito. Policiais que trabalharam na Rotam, policiais que sabiam de logística, de técnicas legislativas, técnicas investigativas, tudo isso dificulta.

Um homicídio desse porte, a gente nem chama de homicídio mercenário, chama de homicídio “empresarializado”. Ou seja, como se fosse uma estrutura, uma empresa formada para a prática de um crime, onde você tem divisão de tarefas e cada um tinha sua função.
A função de atirar, a função de guardar a moto, a função de fugir, a função para quem vai ser entregue essa arma, pagamentos. Assim você pode entender a complexidade dessa investigação, que se tornou ainda mais difícil com a petição enviada pelo Renato.
MidiaNews - Em várias ocasiões, o senhor citou essa representação que o Renato Nery enviou à OAB alguns meses antes de ser assassinado. Chegou a dizer que era como se fosse um “filme do crime”. Qual foi a importância desse documento para a investigação?
Bruno Abreu - Trouxe uma importância grande, mas ao mesmo tempo uma dificuldade, uma perplexidade para nós. É até uma pergunta que a explicação vai ser um pouco longa, mas é necessário até para que o público entenda. Tanto em termos de inquérito policial, quanto do cotidiano. O Renato trouxe, na verdade, um enredo bem denso do que poderia acontecer com ele. Parecia que ele tinha tido uma premonição.
Dez dias antes de morrer, ele escreveu uma carta com muita emoção, com muita raiva, indicando pessoas que, para ele, teriam um escritório do crime em Cuiabá. A Julinere morava em Primavera [do Leste].
Quando a pessoa morre, a gente faz uma reconstrução histórica da vida dela. Só que essa reconstrução histórica foi resumida por ele. Ela foi antecipada. Então, de uma forma, nos ajudou. Mas ela trouxe uma dificuldade pra nós, porque você imagina, uma vítima, antes de morrer, aponta que o suspeito é fulano de tal. Você como investigador e delegado teria coragem de desmentir ele e mudar o rumo da investigação? Isso é muito difícil.
Victor Ostetti/MidiaNews
Delegado Bruno Abreu: "Quando a pessoa morre, a gente faz uma reconstrução histórica da vida dela"
Isso, na investigação, a gente chama de viés de confirmação. Esse viés de confirmação foi muito difícil de a gente mudar os rumos. O que é um viés de confirmação? É um viés cognitivo, é um erro sistêmico do nosso cérebro, que a gente, ao fixar uma hipótese, a gente quer buscar elementos que fortaleçam a hipótese inicial.
Se ele está dizendo em vida que o escritório do crime são as pessoas que estão trazendo problema para ele, seria muito mais fácil para nós, até porque nosso cérebro não quer resistir, ele quer conforto. É muito mais fácil para nós seguirmos o que a vítima disse em vida. E a Julinere [Bentos], em nenhum momento, foi citada na investigação, a não ser de forma unilateral, muito tímida.
Então, coube a nós sentar, com sabedoria, coragem, resiliência, equilíbrio emocional, senso de justiça e, principalmente, coragem, para entender que poderia não ser isso. E a Julinere, durante a investigação, em nenhum momento aparecia. Ter que desviar o rumo da investigação e começar a olhar de perto para ela não foi fácil. Requereu coragem, disciplina.
MidiaNews - Até porque seria ruim acusar algum inocente.
Bruno Abreu - Um erro por um viés cognitivo é uma catástrofe. Da mesma forma que a gente solicita prisão, a gente investiga, e a gente pode gerar erros no Poder Judiciário, que confia no nosso trabalho. E todas as provas levavam para um caminho. Quando a gente teve que mostrar que as provas teriam que ser levadas para outro caminho, foi uma das dificuldades que encontramos.

Mas a petição foi muito importante, porque encurtou as pessoas que teriam que ser investigadas, mas que fique bem claro que todas essas pessoas iriam ser, inevitavelmente, investigadas. Eu li a petição pessoalmente, são aproximadamente oito mil páginas. E eu fiz questão de ler todas as páginas e entender cada parte.
MidiaNews - E qual foi a outra dificuldade do processo?
Bruno Abreu - Foi que quanto mais a gente investigava, mais a gente entendia que não sabia nada. É como o Sócrates dizia: ‘Só sei que nada sei’. Então, quanto mais aprendia, mais se tornava inteligente na investigação, mas mais parecia que era ignorante. Era um paradoxo. Parecia que o inquérito era infinito, como um losango sem fim.
Depois de meses, com a busca e apreensão na Julinere, analisando o telefone dela, vimos que ela formatou o telefone quatro dias depois. Então, aquela formiguinha estava sozinha, de um lado, mas começou a aparecer mais formigas e os indícios começaram a mudar. Foram semanas, dias, noites, sábados e domingos para poder entender as fases do processo e o porquê e como isso aconteceu.
Porque a Julinere, não sei se vocês recordam, fez um acordo com o Renato três dias antes dele morrer. E o Renato estava super feliz. Me diga, em que consciência você vai investigar uma pessoa que teria feito um acordo, no qual a vítima estava feliz? Ter essa percepção, essa maturidade, não foi fácil.
Às vezes, fui contrariado, mas segui o que me ensinaram, que é coerência ética, praticar o que se ensina e ter muita humildade intelectual de perguntar o que se ignora. Eu sempre chamava o Dr. Walmir [Cavalheri], eu sempre chamava alguém que entendia mais do assunto de processo civil.
A minha própria esposa, que vive disso, e a gente tinha que entender em que momento partiu a ordem da execução, em que momento começou o iter criminis, que é preparação, cogitação, preparação e início do crime. Isso é uma dificuldade muito grande.
MidiaNews - A investigação resultou na prisão de sete policiais militares, dois empresários e o atirador. Como foi conduzir um caso que envolvia tantos agentes de segurança pública? Em algum momento, temeu alguma represália?
Bruno Abreu - Não. Represália, não. O receio, é normal. Somos seres humanos, a gente já viu muitos casos de morte de agentes pelos próprios agentes, mas sinceramente nunca pensei nisso. Sabe por quê? Porque a DHPP, falo com toda a convicção, não investiga instituições, investiga condutas. Todo o nosso procedimento foi com base na ética, foi com base na comunicação à corregedoria da PM.
Os próprios policiais viram a nossa condução, desde a busca e apreensão até a prisão. Foi uma operação que em nenhum momento expôs os policiais. Apesar de que a gente ficar triste, a gente não quer acreditar. No início da investigação, eu, principalmente, não queria acreditar que tivessem policiais envolvidos nisso. Mas a prática mostra que, infelizmente, a gente começou a detectar policiais envolvidos nessa morte, o que deixou a gente muito triste.
Mas o dever de justiça e responsabilidade foi maior. E a gente teve que tomar as medidas cabíveis e imprescindíveis, que eram a prisão.

MidiaNews - Todos eles já foram indiciados. Em tese, o inquérito teria sido finalizado. Já terminou a investigação? Ainda vai ter desdobramentos desse caso?
Bruno Abreu - Sim. Temos um inquérito policial complementar e instaurado para apurar a participação de outras pessoas nesse crime. Porque muitas coisas estão em sigilo. É difícil de acreditar que a Julinere e o marido, sozinhos, planejaram esse crime. Até porque, muitas pessoas tinham interesse naquelas terras.
A própria vítima, em vida, informava que havia um consórcio de pessoas querendo tirar toda a terra dele. A preocupação dele não era morrer, era perder as terras, palavras dele. E aí vem a palavra "escritório do crime”. A palavra “escritório do crime” não veio por causa daquela petição. A petição foi mera coincidência.
O nome “escritório do crime”, a gente não estava se referindo, em nenhum momento, para falar que foi um escritório de advogados. “Escritório do crime” fiz referência até a uma operação que foi a operação do Rio de Janeiro onde a Marielle [Franco] foi morta. Aquele homicídio foi praticado por integrantes de um escritório do crime, que é um escritório montado para prática de crimes.
Toda a morte que você tem, tem uma história interrompida e todo plantão que a gente tem, outras mortes acontecem, outras mães querem respostas. Eu sempre falava isso para as filhas do Renato que me procuravam: ‘Nós estamos dando todo o apoio aqui, mas tem outras mães também que estão querendo a resposta’.
Porque num homicídio, diferente de um roubo, diferente de um furto, onde a vítima quer os bens de volta, o que posso devolver para uma mãe que perdeu um filho? Ou uma filha que perdeu um pai? Eu só posso devolver uma coisa, que é a verdade.
Victor Ostetti/MidiaNews
Delegado: "Aquele homicídio foi praticado por integrantes de um escritório do crime"
E o inquérito policial é um instrumento para a busca da verdade, de justiça. A gente teve que conciliar o inquérito policial, que foi exaustivo com outros inquéritos policiais. Mas em relação aos policiais [presos] tenho certeza que os policiais de bem entenderam, completamente, o que aconteceu e o que tinha que acontecer.
Porque na cena do crime do Renato eu vi diversos policiais empenhados em querer pegar [os envolvidos]. Eu tenho certeza que todos eles que estavam ali ficaram desapontados em saber que colegas seus praticaram esse crime contra o ex-presidente da OAB, às 9 horas da manhã de uma sexta-feira.
MidiaNews - O senhor já havia trabalhado em outros casos de pistolagem? O que os diferencia de um homicídio comum?
Bruno Abreu - A estrutura. Um crime comum, geralmente, você tem um contato direto com a vítima e quem executa. Concorda? É um conflito de emoções, é um feminicídio. Você tem um contato direto. É um homicídio até mais fácil de se resolver. Já no homicídio de pistolagem, o homicídio de mercenário, onde há promessa de recompensa, geralmente é mais estruturado. É mais complexo de se resolver até pelo número de pessoas.
O crime de pistolagem nunca é feito sozinho. Para nós, é o que é mais difícil. Só que ao mesmo tempo que é difícil, traz um certo conforto investigativo, porque um crime de pistolagem, a média é de 30 a 90 dias para você executar. Nesse tempo, quem pratica homicídio ou quem organiza deixa rastros, que não posso falar, mas deixa diversos rastros. Em um momento ou outro, a gente acaba cruzando as informações e colocando as pessoas no seu devido lugar.
MidiaNews - Não existe crime perfeito?
Bruno Abreu - Não. Existe crime mal investigado. Não porque o policial é ruim ou é preguiçoso, mas porque, às vezes, o número de processos, de pessoas, não consegue acompanhar o ritmo da sociedade. Como falei, é cada vez mais homicídios, discussões, intolerância religiosa, intolerância racial, e tudo faz com que os homicídios cresçam.
MidiaNews - Outro caso de grande repercussão conduzido pelo senhor foi o assassinato da Solange Sobrinho na UFMT. Quando o autor foi identificado, descobriu também que ele era responsável por outros estupros e um feminicídio. Como foi o processo para chegar nesse homem?
Bruno Abreu - Esse caso aconteceu logo em seguida ao caso do Renato, quando a gente estava tentando tranquilizar a delegacia, a mente, colocando as coisas no lugar. Em termos de dificuldade, vou me colocar entre os crimes mais difíceis que tive que atuar. Quando chegamos no local, a gente se deparou com uma vítima deitada no chão com indícios de crime sexual. Precisamos da perícia técnica, que tem toda a importância no homicídio, como a importância de um delegado, do investigador.
O delegado faz a interpretação jurídica com base nesses dados técnicos, científicos, que são enviados a nós. Porque a gente faz uma simbiose de tudo que foi coletado e chegamos a uma conclusão. De início, o que temos numa cena de crime? Temos um retrato.
Cabe a você mostrar o enredo, o filme, os atores daquele filme, e dar o capítulo final daquele crime. A perícia coletou os fluidos e constatou sêmen. Do sêmen extraiu o DNA, do DNA extraiu o perfil genético e colocando no banco de dados genéticos concluiu-se que aquele estuprador, aquela pessoa que praticou aquele ato sexual já teria praticado homicídios.

Porque qual é a dificuldade nossa? A perícia, não coloca que teve estupro. A perícia não pode colocar no laudo, em tese, que houve homicídio, por exemplo. Ela coloca, que a causa da morte foi esganadura. O objeto que matou a pessoa foi um objeto contundente. Que houve ato sexual. Mas isso quer dizer que houve estupro? Não. Está entendendo?
Uma pessoa que sofreu estupro, não necessariamente foi a pessoa que praticou um ato sexual com a vítima. Você imagina, se uma pessoa vai lá, pratica um ato sexual, vai embora, vem um louco, e tenta também o ato, não consegue e mata. Olha a responsabilidade que temos. Então, a perícia traz esses dados técnicos, científicos. Com base na nossa investigação, diligência, análise de câmeras, nós chegamos a uma conclusão.
E ficou muito mais fácil com base no histórico criminal do Reyvan [da Silva Carvalho], graças à Politec. Eu tenho que agradecer à perita Ellen, que às 6 horas da manhã abriu a porta da sua casa para me receber, para me dizer quem era o autor daquele crime.
Eu sou um cara que não gosto de esperar. Chegou o resultado, é imediatamente pedido de prisão, porque não quero que esse cara pratique outro homicídio. E a gente descobriu [que ele foi o autor] do feminicídio da Marinalva [Soares], no qual uma terceira pessoa estava sendo processada, e graças a essa linda perícia técnica que fizeram, conseguimos fazer uma das justiças mais bonitas que já vi, que é tirar uma pessoa inocente da cadeira.
MidiaNews - O Reyvan, autor desse feminicídio da Solange, era um morador de rua. Como que conseguiu encontrar ele?
Bruno Abreu - É. A gente sabia que o Reyvan frequentava a UFMT. Tem coisas que é até difícil de explicar. A gente chamou uma testemunha da delegacia e ela, sem perceber, nos deu uma pista de onde ele estaria, que era justamente na UFMT. E os policiais foram lá e eu falei: ‘Só sai daí quando achar ele’. E acharam, era coisa de cinco e pouco da tarde, estava sentado na piscina, usando droga e, provavelmente, nesse momento, iria praticar um outro homicídio ou um outro estupro. Graças a Deus, tiramos ele das ruas.
MidiaNews - O senhor já citou a questão da perícia, que teve papel decisivo nesse caso. Foi a primeira vez que liderou uma investigação em que a prova científica teve peso tão determinante?
Bruno Abreu - A tecnologia hoje é a espinha dorsal desses tipos de investigação. A gente poderia levar o Reyvan à autoria desse crime, mas vou te falar que seria muito difícil. Muito difícil. A gente poderia até hoje ter esse inquérito aberto. Então, vou dizer que a perícia foi, nesse caso, a rainha das provas. Foi a prova determinante.
Porque o DNA fixa a digital da pessoa. Ela mostra que você estava naquele local. Agora, cabe a você, suspeito, me dizer em que circunstância estava ali. Na oitiva do Reyvan, ele mentiu diversas vezes, não sabia responder nenhuma pergunta que a gente fez. Para pedir a prisão, a gente precisa de indícios de autoria e prova da materialidade do crime, o que a gente tinha com base no histórico dele. E a gente não tem dúvida que foi ele quem fez isso.
MidiaNews - O senhor disse que esse caso da Solange foi um dos mais difíceis da sua carreira. E te marcou, pessoalmente, pela violência, repercussão ou desfecho que teve?
Bruno Abreu - Olha, uma pessoa que tem esquizofrenia… Você consegue imaginar algo mais grave do que uma pessoa ser estuprada? Você, mulher, ser estuprada por alguém que não quer praticar o ato sexual e depois ser morta? Outra dificuldade que tínhamos, era qual o perfil de pessoas que estamos procurando? Nós estávamos procurando um faccionado? Não. Porque o faccionado não aceita isso. Nós estávamos procurando o quê? Um estuprador.
O trabalho aqui deveria ser feito em conjunto com a delegacia da mulher. Porque esse perfil de gente, com certeza, a delegacia da mulher acabou que nos ajudou em relação a isso de uma forma inicial. Mas o determinante, realmente, foi a perícia técnica que constatou. Deu todas as provas, eliminou várias dúvidas que tínhamos e fomos ao ponto central que era prender ele, tirar da rua, fazer ele confessar.
Ele confessou o ato sexual, só que ele não soube explicar o que ele fez depois. E ela apareceu ali com esganaduras. Aí eu posso dizer que teve um estupro seguido de homicídio, porque esganadura não tem como uma pessoa ter praticado por si só.
MidiaNews - Essas investigações de grande repercussão atraem mais atenção e pressão, também, para quem está investigando. Isso tanto da imprensa quanto da própria instituição. Como que lida com isso?
Bruno Abreu - A imprensa, a vítima, os familiares da vítima e a sociedade trabalham com o tempo da notícia. Vocês querem tudo rápido, querem para ontem, saem da cena do crime e querem saber quem matou, qual o motivo, querem essas informações. E é o trabalho de vocês. Eu respeito muito o trabalho de vocês. Só que também trabalhamos com tempo, a gente trabalha com o tempo da prova. E o tempo da prova impõe limites legais, limites éticos, limite de tempo, de resposta de outros órgãos.
A gente tem que separar a emoção da pressão da sociedade, que para mim, não afeta de jeito nenhum. Eu sou muito tranquilo nisso. Minha pressão é interna, é pessoal. E eu, no caso, sei separar essa pressão que a gente sofre da mídia, da sociedade, dos familiares. Porque nessas horas você tem que ter controle emocional, equilíbrio, sabedoria, coragem, senso de justiça. São virtudes, as virtudes estóicas de um ser humano, que tenta buscar a felicidade, buscar sempre trabalhar de forma correta.
MidiaNews - Essa exposição pública, vê de forma positiva, como reconhecimento, ou mais como um peso?
Bruno Abreu - Os dois. Cada vez que a gente soluciona um crime, a gente cria mais responsabilidade. A confiança, cada vez que você soluciona um crime, é muito maior. E essa confiança que depositam em nós, gera o que a gente chama de legítima expectativa. As pessoas têm a grande expectativa que, ao acontecer um crime, a DHPP vai resolver. A gente fica com esse senso de justiça, de reconhecimento, mas ao mesmo tempo de responsabilidade que não pode errar. Porque é um erro de um delegado, ele é catastrófico. É uma catástrofe. É um erro dificilmente esquecido.

Estamos lidando com a liberdade de uma pessoa. Isso gera efeito cascata. Um erro aqui, gera um erro no Poder Judiciário, gera um erro no Ministério Público. E fere a credibilidade não só do sistema jurídico, mas da própria instituição, que pra nós é muito importante.
MidiaNews - No ano que vem vão ter as eleições. Alguns agentes das Forças de Segurança estão no páreo para uma possível candidatura. Talvez na Assembleia Legislativa, no Congresso, como o delegado Frederico Murta. Esse é um desejo do senhor, senão agora, no futuro?
Bruno Abreu - Não. Isso aí não vai ter arrependimento. Nunca na minha vida. Não faz parte de mim, não faço parte de política. Respeito quem quer exercer, quem tem essa ambição. Na instituição, tenho colegas que têm a missão, acho salutar. E é normal numa carreira as pessoas ocuparem cargos importantes. Eu sempre digo, hoje tenho uma mentalidade, amanhã posso ter outra. Mas de política, pode ter certeza que não vou ter. Se amanhã me chamarem para uma missão que talvez eu entenda que possa ter condições, posso, sim, ajudar. Mas hoje o meu propósito é continuar na DHPP.
MidiaNews - Parece que agora vai ter uma mudança de premiação na Polícia Civil, que vai deixar de focar em termos qualitativos, vai ser quantitativo para o pagamento de bonificação. Acha isso justo? E o senhor também acha que está bom hoje o salário que você recebe e tudo mais, de acordo com essa rotina difícil que leva?
Bruno Abreu - Não vou negar que o salário de Mato Grosso é bom, mas ao mesmo tempo, Mato Grosso é o estado mais difícil de se morar. Tudo aqui é muito mais caro que no Rio de Janeiro, que São Paulo. Então, o salário é bom, mas se o salário não fosse tão bom, as pessoas não viriam para cá. Tem que colocar as coisas certas no lugar. Em relação a esses benefícios que o governador está dando, sinceramente, é uma dúvida até minha. Eu não consegui compreender ainda. Está difícil de compreender entre os colegas.

Eu prefiro não colocar o que eu penso, porque eu não tenho ainda 100% de certeza do que está acontecendo. Eu acho que tem que ter muito cuidado na hora de colocar essas verbas porque você pode, às vezes, criar inimizades dentro da própria intuição, inimizades fora da instituição. Porque numa briga entre uma instituição, uma briga entre os próprios colegas, quem perde é a sociedade.
Mas eu não posso comentar porque eu não tive ainda acesso integral a isso. Eu não pude entender, ninguém nos explicou, não houve uma reunião para explicar como seria pago isso. Mas eu sempre digo assim que a salvação de tudo é individual.
Precisa do dinheiro, da saúde psicológica, mas se você ficar dependendo dessas verbas adicionais, isso pode até atrapalhar a sua questão cognitiva, sua questão de esforço de trabalho. Em um inquérito de homicídio, você não pode trabalhar com tempo, você não pode trabalhar com números. Como é que você diferencia um inquérito de homicídio com um inquérito de Maria da Penha, por exemplo? Para você investigar um homicídio, demora, às vezes, um, dois, três, quatro, dez anos. Uma ameaça da Maria da Penha, às vezes, você termina o inquérito em duas semanas. Como você faz essa mensuração?
Você pode acabar, dependendo do decreto, desestimulando pessoas que estão trabalhando. A Delegacia de Homicídios, para mim, é a delegacia mais importante do Estado. Você consegue imaginar um crime maior que o crime de homicídio? Tem algo mais abominável do que perder uma vida? Eu não conheço. É uma das delegacias mais importantes do Estado, se não for a mais. Justamente porque você está lidando com um crime supremo.
Nada é mais grave que um latrocínio, nada mais grave que um homicídio, um estupro seguido de morte. Você não tem como recuperar nada daquilo que você perdeu, a não ser trazer a verdade para a família da vítima. O peso da DHPP é um peso diferencial.
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