O moderno Estado Liberal de Direito nasce como uma engenharia de contenção: uma superestrutura jurídica erguida para domar o poder estatal e resguardar o indivíduo. Seu alerta fundacional é simples e permanente: o maior inimigo da liberdade é o próprio Estado. Não por perversidade moral, mas por vocação estrutural, porque onde há poder concentrado, há impulso ao excesso.
A experiência histórica, porém, revela um dado incômodo: o Estado desenvolve notável habilidade para contornar a lei não para servir ao interesse geral, mas para facilitar o funcionamento de sua própria burocracia. Direitos deixam de ser garantias e passam a ser tratados como entraves administrativos. É justamente contra essa deriva silenciosa, técnica e eficiente que o Estado Liberal de Direito se justifica, não para fortalecer o poder, mas para mantê-lo permanentemente sob suspeita.
Por isso surgem as garantias constitucionais, a divisão de poderes, os freios e contrapesos, o Judiciário independente. A promessa é clara: um Estado limitado e juridicamente controlado, no qual governantes e governados estão igualmente submetidos à lei. Mas essa promessa só se realiza quando a submissão do Estado à lei não é apenas formal, mas material. Quando a lei é reconhecida como legítima, razoável e socialmente aceitável, produz segurança jurídica, permitindo que a autoridade governe sob a lei, e não acima dela.
É aqui que o Brasil começa a escapar do modelo. O Estado Liberal de Direito foi transplantado sem lastro cultural. O resultado não foi um Estado submetido à lei, mas um Estado assimétrico: forte para cobrar, fraco para entregar; rígido para o pequeno, maleável para o grande; técnico na forma, político no conteúdo. Um Estado governado por uma elite que mantém relação patrimonialista e clientelista com o alto escalão do serviço público, explorando as oportunidades que a própria máquina estatal oferece.
Esse é o Dragão da Maldade brasileiro: a máquina pública patrimonializada que sobrevive a regimes, ideologias e eleições. Não é um desvio ocasional, mas uma lógica. Não é corrupção episódica, mas forma de funcionamento. O dragão não governa contra a lei; governa através dela, dobrando-a, interpretando-a e administrando-a conforme a conveniência do poder.
Ao povo, resta a resignação, a humildade espinosana: a tristeza que nasce da consciência da própria impotência diante de um sistema fora de seu controle. A esperança desloca-se da política para o messiânico. Quando a política falha, a fé espera; quando a fé cansa, o riso satiriza. Para o cidadão comum – quase todo mundo, exceto barão financeiro, do agro e a elite do Serviço Público –, discutir a política de Brasília e seus tribunais é tão inalcançável quanto inútil, como um debate sobre a existência de Atlântida.
Nesse vazio entre decisão e participação, a democracia encolhe e vira rito. Vota-se menos para escolher do que para legitimar o que já foi decidido. O gesto se repete, o rito se cumpre, mas a experiência democrática, esvaziada de controle e de sentido popular, reduz-se a uma formalidade insatisfatória, funcional ao sistema, distante do povo e regida por dois monstros que precisariam voltar para a garrafa: a reeleição e o financiamento público de campanha.
No Brasil profundo, a legitimidade não nasce da norma abstrata, mas da reconhecibilidade. A lei não pega; a narrativa pega. Não é a sentença que absolve ou condena, mas o riso coletivo. O tribunal final não é o Estado, mas a comunidade. Sem adesão simbólica, a legalidade vira ruído.
Daí a ética popular da esperteza da personagem João Grilo de Suassuna. Herdeira direta do mundo medieval-ibérico, ela não é vício moral, mas tecnologia social de sobrevivência. O herói que segue a regra demais morre cedo; o que dobra a regra volta para casa. A esperteza vira virtude política. A validação não vem do Estado nem da Igreja, mas da memória coletiva. Se o verso pega, é verdadeiro; se não pega, morre.
É nesse imaginário que Jair Bolsonaro assume o papel de um Dom Quixote tropical, não o louco sublime, mas o cavaleiro solitário, sem escudeiro e sem chão. Faltou-lhe Sancho Pança para sussurrar prudência e traduzir o mundo. Onde havia engrenagens, viu gigantes; onde havia política miúda, enxergou feitiços. Escolheu combater o mundo como se fosse questão de pureza moral, quando o mundo lhe pedia astúcia e desvio. No tribunal da comunidade, apresentou-se como herói reto, paladino da lei, da ordem e da punição. Ali, a pureza não absolve.
O problema é estrutural: moralismo sem esperteza não vira mito no Brasil. Aqui, quem se anuncia puro demais soa suspeito; quem se proclama incorruptível parece ingênuo ou hipócrita. Bolsonaro vestiu a armadura do justiceiro para enfrentar o dragão errado. Atacou moinhos esperando redenção.
Como todo Quixote, teve sua Dulcineia: o Exército, não o real, institucional e limitado, mas o imaginado, moralmente puro e acima da política. Um fetiche simbólico que legitimava a cruzada sem jamais agir. O golpe nunca foi plano; foi promessa vaga, sempre adiada. Sem Sancho Pança que traduzisse Congresso, orçamento e custo político, confundiu neutralidade institucional com traição pessoal. Esperou redenção onde só havia moinhos. No Brasil, isso é fatal. O mito precisa voltar. O brasileiro vive um senso de urgência da vida; não pode se dar ao luxo de esperar Dom Sebastião.
Lula opera em outro registro. No imaginário popular, ocupa o lugar do anti-herói arcaico: falho, esperto, contraditório, que cai, levanta e retorna para contar a história. Não é santo e nunca tentou ser. Sua absolvição nasce dessa recusa da pureza. O povo não pergunta se respeitou o código, mas se “é um dos nossos”. É o Lazarillo de Tormes que viu na política sua chance de transcendência simbólica de classe, sem jamais esquecer os seus.
Enquanto o juridiquês ergue fundamentos, o Brasil pergunta se funciona. A condenação de Lula não fracassou por deficiência técnica, mas por não ter se transformado em narrativa moral. Sem riso, sem catarse, sem justiça sentida, a sentença não se cumpre no imaginário. Permanece papel. Lula foi o presidente que mais falou à matéria da vida da maioria pobre do país. Falou de fome, de renda, de desigualdade não como abstração, mas como urgência. Ao fazê-lo, despertou ressentimento nas entranhas do Dragão, onde a redistribuição é sempre sentida como perda de privilégio. Bolsonaro ofereceu sobretudo palavra e confronto; Lula, ao menos no início, ofereceu uma agenda nacional que colocou o pobre no campo de visão do Estado. Hoje governa sabendo que não venceu o Dragão, apenas aprendeu a caminhar sob a sua sombra.
O Judiciário, nesse ciclo de distúrbio institucional que vai do impeachment de Dilma à Lava-Jato e ao fetiche golpista do bolsonarismo, encarnou Antônio das Mortes. Não herói, mas instrumento. Chamado quando a política falha, improvisa para conter o colapso. Ajusta a técnica à urgência, dobra a forma para preservar a função. Não é o herói, mas instrumento. Convocado quando a política perde o controle, improvisa para sobreviver. Age fora do roteiro clássico do Estado de Direito, ajusta a técnica à urgência, dobra a forma para preservar a função. Não governa, não encanta, não constrói consenso: executa uma missão estabilizadora. Mata dragões em nome de uma ordem que não construiu. À maneira de um Barão de Münchhausen togado, a Corte se puxa pelos próprios cabelos quando a política não resolve o impasse.
Quando o STF decide sozinho, sem o consenso do Legislativo, gera ressentimento. Quando decide em sintonia com o clima político, gera legitimidade, mesmo que tecnicamente discutível. No Brasil, legalidade sem inteligibilidade não escala. O problema é que Antônio das Mortes não pode permanecer em cena. Quando a exceção vira método, o matador passa a assustar mais do que o dragão da maldade. É como o gênio que se recusa a voltar para a garrafa.
Na política real, reformas estruturais não se fazem com discurso, mas com estabilidade mínima. Estabilidade custa caro: emendas, cargos, concessões, silêncio comprado. Lula sempre entendeu isso. Bolsonaro apostou no confronto permanente e queimou o ativo mais escasso da política: tempo.
O impasse é conhecido: não se desmonta a lógica patrimonialista sem um Estado que funcione, nem se constrói um Estado que funcione mantendo essa lógica. Todos sabem onde está o defeito. Ninguém quer pagar a conta. No Brasil real, quem paga sozinho não vira herói. Serve de aviso.
O ciclo recente parece sugerir um desfecho confortável: Bolsonaro condenado, o Quixote abatido, o monstro moralista neutralizado. O Santo Guerreiro governa sem adversário à altura. Mas o Dragão da Maldade não era Bolsonaro. Era, e ainda é, a máquina estatal. O dragão não morre porque não é personagem. Derrubam-se cavaleiros, trocam-se mitos, alternam-se governos, mas a engrenagem permanece.
Aqui desembarcou uma alma ibérica ancestral, formada na escassez, na astúcia e na sobrevivência, que ao tocar terra se fundiu ao indígena e ao africano. Dessa mistura nasceu um povo. Mas na mesma nau veio outra coisa: a visão de um Estado medieval explorador, anterior ao liberalismo, à cidadania e à ideia de bem comum.
O Brasil não nasce como pacto político. Nasce como companhia de exploração comercial. Antes de ser país, foi empreendimento; antes de ter povo, teve acionistas, as capitanias hereditárias. O Estado não surgiu para proteger, mas para extrair. Essa lógica atravessa a Colônia, se acomoda no Império e se adapta a cada regime sem jamais se dissolver.
A vinda do Imperador não rompeu o modelo; apenas o consolidou. Formou-se uma elite que não se vê como parte da sociedade, mas como sua administradora natural, moldando o Estado à sua imagem: hierárquico, patrimonial, funcional para poucos e opaco para muitos. Para o povo, sempre foi força estranha e predatória. O Dragão da Maldade.
Desde então, o dragão muda de nome e de discurso, mas não de lógica. Colônia, Império, República, ditadura, democracia: o casco permanece. A máquina troca de uniforme, não de função. A cabeça do Dragão prefere um Estado disfuncional porque disfuncional é um Estado fácil de capturar.
Por isso, o dragão não morre. Não por invencibilidade, mas por constituição. Matar o dragão seria matar o Brasil oficial, desmontar a engrenagem que sustenta o país desde a origem, e esse preço ninguém quer pagar. Quem ousa contê-lo acaba se parecendo com ele ou se torna institucionalmente descartável quando inconveniente, como sugere o histórico recente de ex-presidentes submetidos a processos penais.
Assim, a lógica ancestral do povo persiste diante de crises sucessivas: desconfia da autoridade, privilegia a inteligência prática, transforma palavra em poder e negocia a moral para preservar a honra. Não tenta corrigir o Estado. Sobrevive a ele.
Diogo Egidio Sachs é advogado.
Entre no grupo do MidiaNews no WhatsApp e receba notícias em tempo real (CLIQUE AQUI).
|
0 Comentário(s).
|