Um pequeno desafio para nossa cultura gastronômica
FERNANDO MACK
Fui até a Feira do Porto, em Cuiabá e comprei um pacu. Neste lugar se pode comprar o que há de melhor entre os peixes pantaneiros. Pintado, cachara, piraputanga, ou piavuçu. Mas, desta vez, queria mesmo era fazer um bom pacu.
Confesso que fiquei um pouco exitante ao escolher como iria fazê-lo. É que o pacu é um peixe muito versátil. Ao longo da história regional da Baixada Cuiabana, ele foi adaptado em diversos pratos.
A maneira mais popular é a ventrecha de pacu frita. Temperada com bastante limão e pimenta do reino, empanada e frita, tornou-se uma verdadeira iguaria da gastronomia cuiabana, sendo consumida não apenas nas refeições, mas também como tira-gosto e comida ocasional.
A ventrecha é um corte que pega as “costelas” do peixe e que não tem mais espinhas, senão as próprias que estruturam a peça. Ou seja, come-se despreocupadamente.
O prato mais tradicional com este exemplar da psicultura pantaneira é o pacu assado. Pode ser recheado com couve. Mas, se for com farofa de banana torna-se mais clássico ainda.
"O ser humano é insuperável quando se trata de suprir suas vontades. E sua criatividade assume proporções geniais. Unindo a cultura gastronômica do Rio Tejo à do Rio Cuiabá, surgiu um prato em que o bacalhau foi substituído pelo pacu seco e salgado"
Os peixeiros desenvolveram uma técnica singular de retirar as espinhas do lombo do pescado que, com pouca perda de carne, ganha-se muito em conforto ao saborear deste prato encorpado, para ser servido acompanhado de arroz meio papa e com pouco sal, vinagrete e pirão.
Há um prato muito exótico, que remonta a época em que havia tanto peixe no Rio Cuiabá que era preciso salgar o pacu, para não perder o estoque. O peixe é “moqueado” e salgado, para ser guardado.
Então, a receita básica é o “arroz com pacu seco”, prato de inspiração portuguesa e que é mesmo para os iniciados na culinária pantaneira.
Contudo, o prato mais exótico feito com pacu, também com ele seco, é o que tem a história mais rica, na minha opinião. Falo do “pacu seco com banana verde”.
Este prato tem suas raízes na corte portuguesa que residiu em Cuiabá nos tempos do Brasil Colônia. Como bons portugueses, eles eram sedentos por bacalhau. No caso, seco e salgado. Mas, como conseguir bacalhau na região mais distante do mar na América do Sul? E mais, como produzir uma boa bacalhoada sem batatas?
O ser humano é insuperável quando se trata de suprir suas vontades. E sua criatividade assume proporções geniais. Unindo a cultura gastronômica do Rio Tejo à do Rio Cuiabá, surgiu um prato em que o bacalhau foi substituído pelo pacu seco e salgado.
Já as batatas foram trocadas por bananas da terra verdes, que todos sabemos não é doce. Seguindo a receita da bacalhoada lusitana, com ingredientes regionais, surge o prato típico da Semana Santa pantaneira!
Era desta inspiração que eu precisava. Mesclar gastronomias étnicas. Mas, fui buscar inspiração nas minhas experiências com a cozinha japonesa, tempo de muito aprendizado com as facas. Então, fiz um delicioso “carpaccio de pacu”, ou melhor, um usuzukuri, na melhor tradição nipônica.
Esta palavra significa “corte ao inverso” e, como a faca japonesa tem fio só de um lado, há uma técnica certa para o destro e para o canhoto. Inverter significa que um destro usou a faca do lado canhoto, entendeu?
Fica aqui a promessa de soltarmos um artigo falando muito mais sobre as facas, combinado? Mas, agora, quero muito que você aprenda a fazer este prato surpreendente que, ao trazer a culinária do extremo Oriente, ratifica a importância do pacu na gastronomia brasileira. Vamos afiar as facas...
Confira no vídeo abaixo a receita de Usuzukuri de Pacu:
FERNANDO MACK é chef, consultor gastronômico e pesquisador independente.